16 Junho 2023
O que é uma alucinação? É uma forma patológica de tentar conformar a realidade externa ao nosso desejo. Pois o reconhecimento daquela realidade pode envolver a experiência da frustração, do adiamento, do fracasso do nosso desejo, por meio da alucinação podemos realizar o desejo removendo de uma vez todas as adversidades impostas pela realidade.
A opinião é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, publicada por La Stampa, 14-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolin.
Em Annecy, na França, um indivíduo gravemente psicótico esfaqueia em um parque quatro crianças pequenas em seus carrinhos. Na Itália, feminicídios atrozes ocorreram nas últimas semanas, entre os quais se destaca aquele de Giulia, morta pelo pai do filho que carregava no ventre há sete meses. Essa série de episódios atrozes, que têm como protagonistas sujeitos muito diferentes, manifestam a particular proximidade da violência com o fenômeno da alucinação. Não apenas porque - é provável no caso francês - o assassino sofre de claros delírios psicóticos, mas porque o recurso à violência evoca em si uma dimensão alucinatória.
O que é uma alucinação? É uma forma patológica de tentar conformar a realidade externa ao nosso desejo. Pois o reconhecimento daquela realidade pode envolver a experiência da frustração, do adiamento, do fracasso do nosso desejo, por meio da alucinação podemos realizar o desejo removendo de uma vez todas as adversidades impostas pela realidade. Por esse motivo a violência rejeita o luto. Se o reconhecimento da realidade implica sempre uma perda, uma laceração, uma divisão, pois a realidade jamais consegue coincidir totalmente com o meu desejo, a alucinação cura dramaticamente essa discrepância forçando a realidade a se submeter ao nosso desejo.
Se, pelo assassinato de Giulia, ter se tornado pai atrapalhava os planos do seu desejo, a passagem ao ato violento com o qual se liberta da companheira grávida de seu filho, assemelha-se a uma verdadeira alucinação, ou seja, realiza imediatamente um seu desejo. Aquele que havia se tornado um obstáculo em sua vida – Giulia grávida de sete meses – é simplesmente eliminado, suprimido, varrido da face da terra. Como pode se ver, em jogo não está apenas um ato hediondo e ignóbil, mas uma verdadeira substituição: o mundo da realidade é substituído por outro mundo, por um mundo mais conforme com o desejo do sujeito.
Podermos derivar uma lei geral: cada vez que a violência se torna protagonista da cena, estamos diante de uma tentativa de substituição do mundo da realidade por um mundo mais conforme com os nossos desejos. A ilusão é a de apagar a realidade em seu caráter mais doloroso e insuportável com um mundo que corresponda ao que queremos.
Cada vez que se bate em alguém violentamente é para apagar interferências inaceitáveis em relação aos nossos planos. É para encontrar um atalho que deveria nos poupar do difícil e tortuoso confronto com a realidade. Acontece também na violência do furto ou naquela da mentira: contornar o esforço do trabalho e o esforço da verdade por meio de uma investida que nos ilude podermos alcançar os nossos objetivos sem sermos obrigados a tais esforços. Também o mundo virtual pode responder a essa necessidade: substituir o mundo real em que a nossa vida não consegue encontrar a sua realização com um outro mundo no qual temos à nossa disposição tudo o que desejamos.
É a linha tênue que aproxima a alucinação à ilusão. Por isso nos nossos sonhos os crimes estão na ordem do dia. O sonho, não por acaso sugere Freud, é uma verdadeira psicose: os nossos desejos se manifestam ignorando a Lei e o Direito, transcendendo qualquer senso do limite. E a natureza "criminógena" do inconsciente. É aquilo que no exercício alucinado da violência toma o controle. Mas é só reconhecendo a violência como uma tentação sempre presente no ser humano que é possível simbolizá-la sem desencadeá-la.
Somente nos reconectando com a nossa alma “cainesca” podemos tentar desativar seu impulso feroz e cruel. Porque a vida só se humaniza plenamente quando consegue renunciar à alucinação de violência. É uma passagem mais complexa daquela que poderia parecer porque somos animais que sempre sonham em realizar seu desejo sem impedimentos, porque somos animais doentes do inconsciente. Não é por acaso que Freud o descrevia através do poder ilimitado do mar Norte. Mas o inconsciente não é apenas um impulso criminógeno. Só se torna quando o ignoramos.
Em vez disso, dever-se-ia aprender a ficar mais perto de nosso inconsciente para evitar que seja forçado a se manifestar nas formas alucinadas da violência. Dever-se-ia ouvir sua voz antes de nos encontrarmos presos num canto recorrendo à violência alucinada para encontrar uma saída que nunca o é. Até mesmo para o assassino de Giulia, a escuridão que ele queria evitar com seu gesto hediondo agora envolve integralmente a sua vida. Porque muitas vezes a violência se volta justamente contra quem a exerce.
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Giulia e a alucinação da violência cega. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU