03 Mai 2023
Julio Trebolle (Madri, 1943) é um dos mais destacados biblistas do mundo e professor emérito do Departamento de Estudos Hebraicos e Aramaicos da Universidade Complutense. Dirigiu o Instituto Universitário de Ciências das Religião e foi membro da equipe internacional de edição dos Manuscritos do Mar Morto.
Seu último livro, Historia mínima de la Biblia (Turner), entre outros temas, fala sobre seu vínculo com o Alcorão, sua influência na literatura universal e da história e ficção que existe nela.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ethic, 28-04-2023. A tradução é do Cepat.
Para Borges, havia três livros constitutivos do ser humano: “A Ilíada”, “A Odisseia” e os “Evangelhos”... As três histórias – a de Troia, a de Ulisses e a de Jesus – bastam para nos explicar?
Não, de modo algum, fica muita humanidade de fora, por exemplo, o Oriente hindu, o chinês e o japonês. Não, o ser humano é muito mais do que esses três livros. Mas, claro, são três títulos indispensáveis para entender o que é o Ocidente, que não pode ser entendido sem Grécia, Roma e a Bíblia.
Eu acrescentaria o direito romano e talvez a Eneida. Mas, felizmente, o ser humano é muito mais complexo e universal do que seria reduzi-lo a esses três livros, por mais enriquecedores e fundamentais que sejam.
Com que disposição se deve, seja quem for, ler a Bíblia?
Com um espírito muito aberto. Costuma-se ler com ideias preconcebidas, a favor ou contra, mas é necessário se deixar levar, deixar-se impressionar e deixar-se escandalizar.
A Bíblia tem setenta faces, como diriam os rabinos, foi escrita ao longo de mil anos e embora possa parecer contraditória em algumas de suas passagens, está impregnada de poesia, e isso explica muitas coisas.
Importa se o que conta é verdade?
Isso importa muito, claro. A questão é: acerca de que verdade estamos nos referindo? Porque há uma verdade histórica na Bíblia que não é a de Adão e Eva. Jesus, sim, é um personagem histórico, mas não se trata de uma biografia que só conta quando nasceu e quando e como morreu, o que importa é o sentido que os textos dão a essa vida.
Portanto, seria necessário distinguir a verdade dos fatos e os fatos verdadeiros, no sentido de que há fatos que criam história. A história como aconteceu é muitas vezes corriqueira e, outras vezes, ganha um imenso sentido em seu contexto. O sentido do nascimento de Jesus carrega uma tradição imensa, por exemplo.
A Bíblia tem sua verdade, por vezes constituída por verdades em tensão, nunca pretendeu ser a verdade absoluta, mas, sim, expõe fatos, interpretações, interpela quem dela se aproxima. É dito que é dogmática, mas não é.
O fato de a literatura bíblica ser inteiramente intertextual, ao contrário da grega ou outras literaturas orientais, é um problema ou uma excelência?
Uma excelência, sem dúvida. Nela, distingue-se uma pluralidade de sentidos: o literal, o moral, o histórico, o místico... Claro, o poético. Soma-se a isso a quantidade de sentidos que recebeu de visões díspares e de natureza diversa, como as provenientes dos grandes sociólogos e antropólogos, como Marx, Weber e Freud, para citar alguns. A Bíblia se deixa interpelar por todas as ciências sociais, e isso só a enriquece.
Há muitos especialistas que falam das três épocas que governaram, do ponto de vista cristão, o mundo: a do Pai, a do Filho e a do Espírito. A espiritualidade de hoje é mais edulcorada do que a de outrora?
Eu não saberia o que te dizer... Claro, a vida antes era muito mais dura do que agora, a partir daí, pode-se pensar que a vida de agora, portanto, está de alguma forma edulcorada. Quem fala de ascetismo, de mística, hoje em dia?
Essas palavras e os grandes textos sagrados foram banalizados, talvez por isso mesmo não haja força interior para enfrentar determinados problemas da vida. Por outro lado, assim como antes havia uma repressão sexual por parte do religioso, hoje, há uma repressão ao religioso, e qualquer repressão psicológica se transforma em um trauma.
O que perde o ser humano se perde o religioso?
Penso que muito. Pode-se viver sem religião, claro, existem sociedades que não são religiosas, mas não se pode esquecer que o religioso é uma realidade na história da humanidade, e destacaria que tem sido fundamental, sobretudo o cristianismo, como organização social solidária.
Hoje em dia, a caridade está desprestigiada, mas foi a base da assistência social por séculos. Eu me pergunto até que ponto a solidariedade pode ser sustentada sem caridade ou religião.
O que explica esse crescente interesse na China pelo cristianismo?
Assim como aqui há um enorme interesse pelo budismo, o alheio nos chama a atenção. No Japão, por exemplo, é estranho o lar que não tem uma Bíblia. O Oriente também se sente fascinado pelo Ocidente e sabe que a Bíblia é uma forma de entendê-lo. Outra coisa é que o cristianismo se espalhe naquelas terras, porque já sabemos as dificuldades que existem para professar segundo determinados credos.
Não é paradoxal que onde a Bíblia situa o Paraíso, entre o Tigre e o Eufrates, seja uma região de conflito permanente?
A região do Oriente Médio é um lugar muito conturbado, muito conflituoso, tem sido assim ao longo da história, possivelmente porque embora a maior parte do território seja deserto, participa de três continentes: Ásia, África e Europa e, portanto, de suas grandes problemáticas. Por ali passaram as grandes guerras de identidade do Ocidente e ali surgem as três religiões do Livro.
Dedicou boa parte de sua vida ao estudo da Bíblia. Ainda se surpreende todas as vezes em que a abre?
Sim e não. Considere que meu estudo da Bíblia é muito técnico e, por isso, coloco entre parênteses o aspecto emocional, que existe, e é enorme, claro. É um dos grandes textos que nos falam da alma e da história dos povos, de nossa identidade.
Dediquei um livro inteiro aos salmos, a obra escrita mais antiga do mundo. Entrar neles é realmente emocionante, comovente. Rilke se expressou acertadamente ao escrever que era o livro mais familiar que existe. Leva a pessoa à infância e a projeta para a morte, fala de tudo, confronta-a com tudo. Existem outras grandes obras, é claro, mas a emoção é característica da Bíblia.
As religiões do livro, as reveladas, são dois mundos tão diferentes em relação às cósmicas, místicas, como alguns insistem em nos fazer ver?
Joga-se com essa distinção, as religiões místicas, do Oriente, e as históricas, do Ocidente. Contudo, acredito que todas as religiões são místicas. Bastam três nomes: São João, Santa Teresa, Miguel de Molinos.
Ocorre que a mística do Oriente é diferente, mais cósmica. As religiões do Livro se diferenciam das outras porque não só carregam uma história, mas também assumem o compromisso de mudá-la. Em todo caso, todas as religiões compartilham alguns traços e se diferenciam por outros.
Qual foi a grande contribuição dos Manuscritos do Mar Morto, encontrados há 70 anos?
São textos anteriores ao cristianismo, mas que refletem o mundo em que nasceu, o que ajuda muito a conhecer a origem do cristianismo. São valiosíssimos para estabelecer os vínculos entre a Grécia e o mundo semítico e, por último, são fundamentais, pois até serem descobertos, havia um único texto da Bíblia, conservado por 3.000 anos, sem variações.
Nesses manuscritos, há diferentes edições, o conteúdo canônico se torna plural. Isso supõe uma ameaça para os protestantes, muito fundamentalistas a esse respeito, assim como para os judeus. O mundo católico e latino é muito mais flexível.
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“Na literatura bíblica, distingue-se uma pluralidade de sentidos”. Entrevista com Julio Trebolle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU