13 Mai 2023
"É hora de fazer uma mudança significativa na nossa perspectiva sobre 'Deus'."
A opinião é do teólogo estadunidense John A. Dick, professor aposentado e ex-pró-reitor acadêmico do American College da Universidade Católica de Leuven, e professor aposentado da Universidade de Ghent, na Bélgica. O artigo foi publicado por La Croix Internacional, 25-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há não muito tempo, conheci um jovem universitário enérgico e curioso, quando ele visitava amigos em comum. Ele sabia que eu era um professor aposentado e perguntou qual era o meu campo de estudos. Eu disse que era teologia. Ele olhou para mim, depois riu e disse que não acreditava mais em Papai Noel nem na velha Divindade lá no céu. Eu ri e disse: “Eu também não”. Então, surpreendentemente, entramos em uma discussão muito séria sobre crença, Jesus e Deus. Essa discussão, espero, continuará.
Ao longo dos últimos 2.000 anos, o cristianismo passou por muitas voltas e reviravoltas teológicas. A maioria envolve uma mudança de foco ou na “ortopraxia” ou na “ortodoxia”. Em uma teologia cristã centrada na vida, o foco principal é a ortopraxia, que significa “conduta correta”. A ortodoxia, por outro lado, significa e enfatiza a “crença correta”.
A ortopraxia certamente foi o foco da vida e dos ensinamentos de Jesus de Nazaré: ser corajoso, compassivo e inspirador em meio aos altos e baixos da vida. E Jesus certamente experimentou os altos e baixos da vida. No Evangelho de João, Jesus diz: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (João 8,12). Na ortopraxia, o cristão é como o Bom Samaritano e encarna e vive o Sermão da Montanha cuidando dos marginalizados, promovendo a compaixão e a paz e compartilhando o amor de Deus.
Talvez tenhamos perdido essa ênfase na ortopraxia hoje? Aquele jovem universitário me disse que achava a Igreja fria, antiquada e interessada apenas em si mesma como instituição. Uma Igreja muito focada na ortodoxia?
Certamente, na história católica romana, o foco na aceitação inquestionável da ortodoxia criou uma atmosfera de controle do pensamento e, muitas vezes, de medo para quem ousava questionar. Tendo crescido como um adolescente católico piedoso, lembro-me de fazer regularmente a oração do Ato de Fé, na qual eu rezava com muito fervor: “Creio em tudo o que crê e ensina a Santa Igreja Católica e Apostólica, porque Deus, verdade infalível, lhe revelou. E nesta fé quero viver e morrer”. Meus colegas do colegial me chamavam de “Pio Dick”.
A ortodoxia não está centrada na vida, mas na doutrina. Trata-se do ensino correto. Quando a se enfatiza a ortodoxia, as pessoas aprendem a doutrina oficial e devem aceitá-la sem questioná-la.
De 1910 a 1967, por exemplo, todos os católicos romanos, “clero, pastores, confessores, pregadores, superiores religiosos e professores em seminários filosófico-teológicos”, tinham que fazer o “Juramento contra o Modernismo”. O modernismo teológico interpretava o ensinamento cristão levando em consideração o conhecimento moderno, a ciência e a ética. Enfatizava a importância da razão e da experiência sobre a autoridade doutrinal. O juramento marcou um ponto alto na campanha do Papa Pio X contra o “modernismo”, que ele denunciou como herético. Embora Pio X tenha morrido em 1914, sua influência de extrema direita sobre o controle do pensamento católico durou muito tempo.
Na plenitude dos tempos, Pio Dick cresceu e se tornou um professor de Teologia Histórica de mente aberta, em um “seminário filosófico-teológico”. Felizmente, ele nunca precisou fazer o “Juramento contra o Modernismo”. Ocasionalmente, ele tinha que se confrontar com alguns bispos que ressoavam fortemente a visão estreita de Pio X e acusavam o professor de ensinamentos heréticos.
O foco em uma ortodoxia fortemente aplicada no cristianismo começou na verdade em 310 EC, quando Constantino legalizou o cristianismo em seu Império Romano. Embora ele não tenha sido batizado até perto da morte em 337, Constantino era muito pragmático sobre o cristianismo e queria usá-lo para sua própria agenda política.
Constantino convocou o Primeiro Concílio de Niceia em 325. Os bispos tiveram que comparecer. Mais significativamente, o Concílio de Niceia emitiu a primeira declaração uniforme da doutrina cristã, chamada de Credo Niceno. Qualquer pessoa que se recusasse a aceitar obedientemente o Credo Niceno era excomungado e exilado... ou pior. Sempre achei digno de nota que o Credo Niceno não diz nada sobre a vida cristã real, ou seja, a ortopraxia. Depois de Niceia, a “fé” rapidamente se tornou uma questão de assentimento intelectual.
Na verdade, “fé” tinha seu sentido original na palavra grega pistis, que significa confiança, compromisso e engajamento pessoal. A fé em Deus, portanto, era uma confiança e um compromisso com Deus. A fé em Cristo era um engajamento comprometido com o chamado e o ministério de Jesus. Era um compromisso a pôr em prática o Evangelho, a ser um seguidor de Cristo. Originalmente, portanto, “fé” significava vida ativa – ortopraxia. Entre 383 e 404 EC, no entanto, quando Jerônimo traduziu a Bíblia para o latim, a palavra grega pistis foi traduzida pela palavra latina fides (crença): uma questão de assentimento intelectual.
No fim do século IV e início do século V, a Igreja estava se tornando uma instituição autoritária que exigia obediência: assentimento fiel. A compreensão da Igreja sobre Deus, graças à doutrina do pecado original do bispo Agostinho de Hipona, tornou-se a de um juiz celestial sentado em seu trono. Agostinho ensinava que os humanos têm uma natureza pecaminosa e contaminada, transmitida por meio da relação sexual.
Cerca de 500 anos depois dele, outro bispo, Anselmo de Cantuária, piorou ainda mais a perspectiva sobre Deus com sua Teoria da Satisfação na Expiação. O bispo Anselmo dizia que Deus ficou tão ofendido com a pecaminosidade humana que exigiu a crucificação e a morte de seu próprio filho Jesus para expiar o pecado da humanidade. Uma visão estranha de Deus. Uma ortodoxia muito severa. Uma estranha compreensão do Jesus histórico.
Uma perspectiva teológica mais saudável – a perspectiva de Jesus – não tem nenhuma visão sinistra de Deus, mas vê Deus como a Presença Divina. “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele”, lemos na Primeira Carta de João (1Jo 4,15). Jesus revelou a Presença Divina dentro do ser humano. Seu sonho era que as pessoas vissem a Presença Divina dentro delas. Algo tão diferente da visão do bispo Anselmo de Cantuária de um Deus ofendido e vingativo lá no céu, que optou por se desconectar da humanidade pecadora.
Em seu livro “It’s Time: Challenges to the Doctrine of the Faith”, o teólogo australiano Michael Morwood enfatiza: “É hora de romper com a visão de mundo de 2.000 anos atrás, com suas noções de um Deus supremo e soberano que viveu nos céus e que desconectou o acesso a ‘Ele mesmo’ devido a algum suposto pecado do primeiro humano”.
Sim. É hora de fazer uma mudança significativa na nossa perspectiva sobre “Deus”. Precisamos passar a apreciar a Presença Divina sempre aqui, sempre e em toda parte ativa em um universo em expansão e na evolução da vida neste planeta. Essa mudança de perspectiva ressoa com a ciência contemporânea, que se vê falando em termos de mistério e de maravilha ao tentar explicar o como e o porquê da realidade.
E depois há o problema do mal. Nossa compreensão contemporânea da humanidade percebe que nós, humanos, somos capazes de destruir a nós mesmos e tudo ao nosso redor. De fato, a humanidade pode dar sua melhor expressão da Presença Divina somente quando se liberta de atividades e comportamentos destrutivos, que destroem as pessoas e prejudicam o mundo natural.
Nós, humanos, só podemos experimentar e expressar verdadeiramente a Presença Divina dentro de nós quando seguimos os padrões universais e vivificantes de cooperação e trabalho conjunto. Nós, e não um Deus lá no céu, é que temos que superar o mal. E a única coisa necessária para o triunfo do mal é que os bons fiquem parados e não façam nada.
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Voltas e reviravoltas teológicas. Artigo de John A. Dick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU