26 Abril 2023
"Demolir mais de 700 casas, sem uma análise profunda da situação fundiária naquela região, provocará uma enorme injustiça como também será um prejuízo imenso. O povo não aceitará despejo, pois toda reintegração de posse é despejo cruel, desumano, covarde e desintegrador de sonhos, histórias e direitos. Regularização, já, da Comunidade Prof. Fábio Alves, pois isto é o justo", escreve Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.
A Ocupação-Comunidade Prof. Fábio Alves, no Barreiro, em Belo Horizonte (MG), com mais de quatro anos de luta, já com 750 famílias, com mais de 700 casas construídas em regime de autoconstrução, nas noites após trabalharem para outros o dia inteiro, e nos finais de semana, em mutirão, com a ajuda de parentes e amigos/as, pegando empréstimo para comprar materiais de construção. No momento da ocupação, o terreno estava totalmente abandonado e ocioso, propriedade que não cumpria função social. O local estava cheio de lixo e entulho.
Assim, a decisão judicial que determina a reintegrar na posse a empresa R.S. Morizono é injusta e inconstitucional, pois “Não existe um centímetro de terra no Brasil que não deva cumprir uma função social” (Jacques Távora Alfonsin). No Brasil, sob os ditames da Constituição de 1988, proprietário de terra precisa exercer função social da sua propriedade, além de ter escritura de compra do imóvel, registro em cartório e demonstrar que está na posse de sua propriedade. Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias (2005), no artigo Função Social da Propriedade: dimensões ambiental e trabalhista, asseveram: “A propriedade não é mais direito absoluto. Com efeito, embora parte da doutrina e jurisprudência, de forma totalmente contrária ao sistema posto, relute em negar proteção absoluta ao direito de propriedade, o fato é que o ordenamento constitucional e infraconstitucional veem que pesa sobre a propriedade uma hipoteca social” (JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 13).
A esse propósito nos referimos à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI nº 2213, que diz: “O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), a propriedade deixa de existir”.
De forma contundente, o jurista Eros Roberto Grau afirma que a propriedade que não cumpre a função social não existe e, como consequência, não merece proteção, devendo ser objeto de perdimento, e não de desapropriação. Textualmente, pondera Eros Grau: “[...] a propriedade dotada de função social, que não esteja a cumpri-la, já não será mais objeto de proteção jurídica. Ou seja, já não haverá mais fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular do bem (propriedade) que não está a cumprir sua função social. Em outros termos, já não há mais, no caso, bem que possa, juridicamente, ser objeto de direito de propriedade [...] não há, na hipótese de propriedade que não cumpre sua função social 'propriedade' desapropriável. Pois é evidente que só se pode desapropriar a propriedade; onde ela não existe, não há o que desapropriar” (GRAU, 1999, p. 316).
Na mesma linha, de forma incisiva, o jurista italiano Pietro Perlingieri afirma que o proprietário “(...) só recebeu do ordenamento jurídico aquele direito de propriedade, na medida em que respeite aquelas obrigações, na medida em que respeite a função social do direito de propriedade. Se o proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico, desaparece o direito de propriedade” (PERLINGIERI, 1971, p. 71).
Pelo artigo 186 da CF/88 toda propriedade deve ter função social e para isto deve cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei 8629/ 93, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores no lucro da propriedade.
O Advogado Dr. Elcio Pacheco demonstrou uma série de ilegalidades no processo. Por exemplo: A empresa R.S. Morizono Empreendimentos e Participações Ltda. apresentou no processo judicial Contrato Particular de Locação, datado e assinado em 26 de julho de 2007, pelo qual a suposta autora R.S. MORIZONO aluga o bem para a Rádio Liberdade. No entanto, a empresa R.S. MORIZONO apresenta junto com a inicial do processo judicial (id. 53557295), certidão da lavra do 7º Ofício de Registro de Imóveis de BH, datado de 16/12/2015, com a matrícula 10858, registro de compra e venda, pelo qual a Radio Liberdade vende para a autora o mesmo imóvel que alugara em 2007. Como pode a suposta autora ter alugado o bem objeto da lide em 2007 para a Rádio Liberdade, se a Radio Liberdade só lhe vende em 2015 o mesmo bem? Há muitas outras ilegalidades.
A Ocupação-Comunidade Prof. Fábio Alves é legítima, pois se trata de luta para efetivar direito constitucional: direito à moradia. A Ocupação Professor Fábio Alves já é uma Comunidade consolidada, com mais de 700 casas de alvenaria construídas, inclusive com Plano Urbanístico construído por professores universitários da área de Arquitetura e Urbanismo, em conjunto com as famílias: lotes do mesmo tamanho, ruas e toda a organização espacial de um bairro formal.
Temos muitos exemplos que podemos citar de casos parecidos com o da Ocupação Prof. Fábio Alves em que o Estado reconheceu a Comunidade e o despejo não aconteceu. Por exemplo, em abril de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial 1.302.736, confirmou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que negou reintegração de posse contra Ocupação que tinha se tornado bairro em Uberaba, MG. A justiça mineira reconheceu, após tantos anos de disputa judicial, que diante da existência de inúmeras edificações e moradores no local, não seria justo decidir pelo despejo das famílias e negou o direito à reintegração de posse em prevalência do interesse público, social e coletivo.
A decisão judicial de reintegração foi convertida em perdas e danos a ser paga em dinheiro. Em voto repleto de doutrinas, teses e precedentes, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, discorreu sobre os princípios da proporcionalidade e da ponderação como forma de o Judiciário dar aos litígios solução serena e eficiente. O ministro relator ressaltou que “o imóvel originalmente reivindicado não existe mais, já que no lugar do terreno antes objeto de comodato surgiu um bairro com vida própria e dotado de infraestrutura urbana.” Segundo a decisão do STJ, não pode ser desconsiderado o surgimento do bairro, onde inúmeras famílias construíram suas vidas, sob pena de cometer-se injustiça maior a pretexto de fazer justiça.
Outro caso julgado pelo STJ é o do Acórdão da Favela do Pullman, em Santo Amaro, SP, que inicialmente era área destinada a um loteamento, mas foi ocupada pouco a pouco e se tornou um bairro em franco processo de consolidação e o Poder Judiciário reconheceu ao final o “perecimento do direito à propriedade”, ou seja, negou o direito de reintegração. Em 2005, o ministro do STJ, Aldir Passarinho Júnior (Relator) decidiu negar a reintegração de nove lotes com 30 famílias na Favela do Pullman. Na decisão, o ministro Aldir afirma: “Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Fotos mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida urbana estável. No caso da Favela do Pullman, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção. Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'.
Segundo o art. 77 do Código Civil, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art. 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando fica em lugar de onde não pode ser retirado. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas – na Favela do Pullman –, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse.”
Tal julgado do STJ é inclusive citado pelo TJMG, que em julgamento de recurso (nº 1.0024.13.304260-6/001) envolvendo as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, registrou que o direito de propriedade deve ter correspondência no atendimento à função social, que lhe é inerente, de maneira a buscar a proteção da dignidade humana, fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal). Concluiu o desembargador Correia Júnior que prevalece o postulado da dignidade humana em se tratando de questões que envolvem a coletividade da população, mormente por se tratar de desocupação de casas, em que vivem idosos e crianças, com o uso prematuro e inadmissível da força policial, não devendo ser concedida ordem de despejo que favorece o direito de propriedade com violação aos direitos fundamentais.
Enfim, há várias decisões do STJ que proíbem despejo de comunidades consolidadas como o caso da Comunidade Prof. Fábio Alves, acompanhada pelo Movimento Luta Popular e por uma significativa Rede de Apoio. Justo e necessário é que a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte (BH) aprove Projeto de Lei caracterizando toda a área da Ocupação Fábio Alves como área de interesse Social para fins de desapropriação para moradia popular das famílias que a ocupam há mais de quatro anos. Que o prefeito de BH, Noman Fuad, desaproprie a área da Ocupação e faça Regularização Fundiária e Urbana (REURBs), conforme determina a Lei 13.465/2017, que diz que assentamentos irregulares devem ser regularizados pelo poder público municipal.
Ademais, é importante frisar que a área alvo do despejo coletivo ordenado pela primeira instância do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) contém nos documentos arrolados nos autos vícios de anotação cartorial, cadeia possessória de duvidosa procedência, situações nas quais deveria o Ministério Público como fiscal da Ordem Jurídica opinar pela suspensão desse despejo nas instâncias recursais a fim de salvaguardar o interesse coletivo em detrimento de interesse particular.
A região na qual está inserido o perímetro da Comunidade Professor Fábio Alves foi desde o início da construção de Belo Horizonte, precisamente depois da metade do século XX, destinada para os Distritos Industriais nos quais o governo do Estado, dono das terras devolutas, fez concessões de grandes terrenos para implantação de polo industrial, sem licitação, por preço irrisório e com cláusula contratual que exigia que em 12 ou 24 meses os empresários deveriam construir empreendimento industrial que gerasse empregos, mas esta cláusula não foi cumprida. Não obstante a concessão de grandes porções de terras urbanas, muitos desses contratos de concessão de terras devolutas urbanas foram maquiados com desvio de finalidade e por conta de manipulações servem hoje em dia para a especulação imobiliária com a explosão demográfica na capital.
Desse modo, há fortes suspeitas de que na maioria dos contratos de concessão de terras devolutas urbanas cedidas pela antiga CDI (Companhia dos Distritos Industriais), hoje denominada CODEMIG (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais), na região oeste de Belo Horizonte, na divisa com o Município de Ibirité, abrangendo a denominada Mancha Industrial do Vale do Jatobá, foram desviadas as finalidades de construção de plantas industriais que caíram na mão de especuladores.
Com efeito, demolir mais de 700 casas, sem uma análise profunda da situação fundiária naquela região, provocará uma enorme injustiça como também será um prejuízo imenso. O povo não aceitará despejo, pois toda reintegração de posse é despejo cruel, desumano, covarde e desintegrador de sonhos, histórias e direitos. Regularização, já, da Comunidade Prof. Fábio Alves, pois isto é o justo.
1 - Frei Gilvander: "Ocupação Fábio Alves, em BH/MG, já se consolidou. Tem q fazer REURBs/Regularização"
2 - Emocionante ver o povo exigir respeito e não aceitar despejo da Ocupação prof. Fábio Alves em BH, MG
3 - Bairro consolidado: Ocupação Fábio Alves, Barreiro, BH/MG. Povo não aceitará despejo. REURB-S, JÁ!
4 - "Não aceitamos despejo nem mortos!" Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5
5 - STJ proíbe despejo de Ocupação CONSOLIDADA como a Fábio Alves, BH/MG. Povo: Não aceitaremos despejo!
6 - Está consolidada a Ocupação Fábio Alves no Barreiro em BH/MG. Povo não aceitará despejo. Vídeo 3
7 - 750 famílias querem só um cantinho para viver: Ocupação Prof. Fábio Alves/BH. Despejo, NÃO! Vídeo 4
9 - Com 750 casas construídas, Ocupação Fábio Alves/BH já é uma Comunidade Consolidada. Não cabe despejo
10 - Lacerda: “Não aceitamos despejo da Ocupação Fábio Alves, em BH-MG!” Audiência Pública na ALMG. Víd 2
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Revista dos tribunais, 1999.
PERLINGIERI, Pietro. Introduzione allá problematica della proprietá. Camerino: Jovene, 1971.
PINTO JÚNIOR, Joaquim Modesto; FARIAS, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2005.
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MG. Ocupação Fábio Alves, 750 famílias: despejar ou regularizar? Artigo de Frei Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU