24 Agosto 2022
"Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse", afirma Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
Existem no campo e na cidade, milhares de Ocupações no Brasil, em luta pela terra e por moradia, diante de decisões judiciais que manda reintegrar na posse pretensos donos sem comprovação de posse anterior e sem verificar se cumpria ou não a função social da propriedade. Diante destas decisões judiciais para despejar as famílias e entregar o terreno a uma empresa ou a uma prefeitura, o povo grita na luta por direitos: “Somos uma Comunidade-Bairro em franco processo de consolidação. Ocupamos por necessidade e porque o terreno estava ocioso sem cumprir sua função social.” Em comunidades em processo de consolidação não há que se falar em despejo, pois o direito à moradia das centenas de pessoas é muito mais abrangente do que uma ação judicial de reintegração de posse movida por uma empresa ou prefeitura. A dignidade humana e o respeito às famílias precisa estar acima dos interesses do grande capital. Nas comunidades em desenvolvimento, o terreno ocioso reivindicado não existe mais, pois o que existe no local é uma Comunidade organizada em franco processo de consolidação, dando função social à propriedade que antes estava jogada às traças.
Propor derrubar moradias construídas com muito suor, trabalho, dia e noite, ao longo de vários anos, para entregar o terreno cheio de escombros com a demolição das residências para que uma empresa possa fazer no local um grande empreendimento econômico para lucrar muito é inadmissível e injustiça brutal. Todo despejo é desumano e brutal, pois além de demolir moradias, destrói sonhos, projetos de vida e causa traumas imensuráveis. É ofensiva a proposta de prefeitos de oferecer apenas aluguel social, que é injusto e insuficiente e muitas vezes para de pagar após alguns meses. Oferecer terreno para construir casinhas “caixotes” de 36 metros quadrados é violentar a dignidade das famílias. O justo e necessário é a Câmara de Vereadores aprovar e promulgar Lei que abre caminho para se fazer REURB-S (Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social) da área ocupada há vários anos pelas famílias. Justo é o prefeito desapropriar a área ocupada e fazer REURB-S na Comunidade garantindo a vida digna e paz para as famílias. Se o poder público e o mercado já reconhecem as Ocupações, não se pode falar em despejo, por serem Comunidades que geralmente têm ruas organizadas, têm redes de energia e água, muitas famílias pagam contas mensais de água e energia. Há coleta de resíduos sólidos pela prefeitura. As famílias são atendidas nos postos de saúde, UPAs e hospital da cidade. As crianças e adolescentes estudam em escolas municipais e estaduais. Enfim, trata-se de ocupações que se tornaram comunidades organizadas, bairros em franco processo de consolidação.
Temos muitos exemplos que podemos citar de casos em que o Estado (Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo) reconheceu a Comunidade e o despejo não aconteceu. Por exemplo, em abril de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial 1.302.736, confirmou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que negou reintegração de posse contra Ocupação que tinha se tornado bairro em Uberaba, MG. Diante da existência de inúmeras edificações e moradores no local, após tantos anos de disputa judicial, a justiça mineira reconheceu e negou o direito à reintegração de posse em prevalência do interesse público, social e coletivo. A decisão judicial de reintegração foi convertida em perdas e danos a ser paga em dinheiro. Em voto repleto de doutrinas, teses e precedentes, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, discorreu sobre os princípios da proporcionalidade e da ponderação como forma de o Judiciário dar aos litígios solução serena e eficiente. O ministro relator ressaltou que “o imóvel originalmente reivindicado não existe mais, já que no lugar do terreno antes objeto de comodato surgiu um bairro com vida própria e dotado de infraestrutura urbana.” Segundo a decisão do STJ, não pode ser desconsiderado o surgimento do bairro, onde inúmeras famílias construíram suas vidas, sob pena de cometer-se injustiça maior a pretexto de fazer justiça [1].
Outro caso julgado pelo STJ é o do Acórdão da Favela do Pullman, em Santo Amaro, SP, que inicialmente era área destinada a um loteamento, mas foi ocupada pouco a pouco e se tornou um bairro em franco processo de consolidação e o Poder Judiciário reconheceu ao final o “perecimento do direito à propriedade”, ou seja, negou o direito de reintegração. Em 2005, o ministro do STJ, Aldir Passarinho Júnior (Relator) decidiu negar a reintegração de nove lotes com 30 famílias na Favela do Pullman. Na decisão, o ministro Aldir afirma: “Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Fotos mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida urbana estável. No caso da Favela do Pullman, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção. Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. A realidade concreta prepondera sobre a "pseudo-realidade jurídico-cartorária". Segundo o art. 77 do Código Civil, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art. 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando fica em lugar de onde não pode ser retirado. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas – na Favela do Pullman -, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse.
Tal julgado do STJ é inclusive citado pelo TJMG, que em julgamento de recurso (nº 1.0024.13.304260-6/001) envolvendo as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, registrou que o direito de propriedade deve ter correspondência no atendimento à função social, que lhe é inerente, de maneira a buscar a proteção da dignidade humana, fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal). Concluiu o desembargador Correia Júnior que prevalece o postulado da dignidade humana em se tratando de questões que envolvem a coletividade da população, mormente por se tratar de desocupação de casas, em que vivem idosos e crianças, com o uso prematuro e inadmissível da força policial, não devendo ser concedida ordem de despejo que favorece o direito de propriedade com violação aos direitos fundamentais.
[1] Confira.
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“Não se pode despejar comunidade consolidada.” Artigo de Frei Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU