19 Abril 2023
Longe de ceder ao wokeness [expressão de origem afro-americana que se refere ao movimento de “acordar” para as questões de justiça social e racial], a Igreja Católica precisa mudar grande parte de seu vocabulário, se quiser ser verdadeiramente evangélica, acolhedora e sinodal.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 15-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Foi encorajador ver os líderes das congregações religiosas masculinas e femininas na França pedirem na semana passada uma reavaliação da linguagem que usam em suas comunidades, especialmente no modo como descrevem e abordam aqueles que – como eles – ocupam cargos de autoridade.
A razão de eles quererem modificar certas palavras e títulos faz parte de um esforço contínuo para corrigir todos os elementos e situações que possam levar a qualquer tipo de abuso sobre as pessoas (especialmente os jovens) que estão sob sua responsabilidade.
Mas há outras razões importantes, além da crise dos abusos aparentemente interminável, pelas quais todos os membros batizados da Igreja Católica precisam limpar a linguagem que usamos nos assuntos eclesiais, para que a nossa comunidade mundial de fé seja mais evangélica, acolhedora e sinodal.
O falecido historiador jesuíta John O’Malley observou que isso já começou a ocorrer no Concílio Vaticano II (1962-1965).
“Foi um evento de linguagem”, escreveu ele em “O que aconteceu no Vaticano II?” (Loyola, 2014). “A linguagem indicava e induzia a uma mudança de valores ou de prioridades.”
Ele argumentou que isso foi além de inventar aquilo que costumamos chamar de “linguagem pastoral” e, na realidade, deu forma a um “estilo” de ser Igreja.
“Palavras como ‘carisma’, ‘diálogo’, ‘parceria’, ‘cooperação’ e ‘amizade’ indicam um novo estilo de exercício da autoridade e advogam implicitamente uma conversão a um novo estilo de pensar, falar e se comportar, uma mudança de um estilo mais autoritário e unidirecional para um modelo mais recíproco e responsivo”, escreveu O’Malley.
Em todo o caso, o que está claro é que o estilo era uma grande questão no Concílio, uma questão disputada no campo de batalha aparentemente superficial do vocabulário e do gênero literário dos documentos, com protagonistas que talvez nem sempre percebessem as profundas implicações do que estava em jogo.
O estilo literário, por assim dizer, era apenas a expressão superficial de algo destinado a penetrar na própria alma da Igreja e de cada católico. Era muito mais do que uma tática ou uma estratégia, muito mais do que simplesmente a adoção de uma “linguagem mais pastoral”.
O falecido jesuíta estadunidense afirmava claramente que o Concílio “não inventou” novas palavras nem “deduziu que elas já não estivessem em ação na Igreja”, mas argumentou que, tomadas como um todo, elas “transmitem a abrangência de um novo e vigorosamente estilo específico de Igreja que o Concílio Vaticano II ofereceu à contemplação, admiração e atualização”. Alguns católicos, como os líderes das congregações religiosas na França, ao que parece, acreditam que ainda temos mais trabalho a fazer no nosso vocabulário eclesial.
Grande parte da linguagem que continuamos usando na Igreja reflete uma mentalidade ou uma atitude que deve ser mudada. Como disse o Papa Francisco na primeira entrevista após sua eleição (com Antonio Spadaro, SJ, em setembro de 2013), “a primeira reforma deve ser a de atitude”.
Em nenhum outro lugar isso é mais urgente do que na nossa atitude para com as autoridades clericais e na maneira como nos dirigimos a elas. Isso começa pelo próprio papa. Seu título primeiro e mais essencial é, evidentemente, o de bispo de Roma. Ele também é chamado de Romano Pontífice ou Sumo Pontífice (o qualificativo é importante, porque todos os bispos são considerados pontífices).
Todos os outros títulos são devocionais ou honorários. Até mesmo a palavra “papa” não é essencial, embora pareça ser a menos clerical. Ela significa simplesmente “pai”. Você também pode chamá-lo de “papai”, se esse for o seu termo carinhoso preferido! Mas, na realidade, o termo correto seria Bispo Francisco. Foi assim que Paulo VI assinou os documentos do Vaticano II (“Paulo, bispo”).
Talvez, o único título devocional para o bispo de Roma que deveria ser eliminado seja “Santo Padre”. Além do fato de que Jesus deixou claro que não devemos chamar a ninguém de “pai” ou “mestre” (veja o que mais ele pensa sobre as autoridades religiosas em Mateus 23), ele realmente se dirige a Deus como “Pai Santo” (Jo 17,11). E o mesmo vale para várias das Orações Eucarísticas da liturgia da Igreja. De fato, acreditamos que o Pai Santo é a primeira pessoa da Santíssima Trindade, e não o bispo de Roma. Lex orandi lex credendi, afinal de contas...
Dirigir-se aos nossos presbíteros como “padres” também é problemático, especialmente em uma Igreja em que a plena adesão e a dignidade se baseiam apenas no Batismo, e não na ordenação sacramental. Somos todos irmãos e irmãs, e chamar as nossas “lideranças” católicas masculinas e femininas dessa forma é mais apropriado e fundamentado em referências bíblicas às lideranças da incipiente comunidade dos fiéis.
Com razão, a maioria das congregações religiosas femininas abandonou o uso de “madre superiora” há muitos anos. Talvez seja a hora de chamarmos todas as pessoas consagradas – incluindo os nossos presbíteros – de irmãs e irmãos.
O Papa Francisco empreendeu o ambicioso projeto de tornar a “sinodalidade” constitutiva de todos os níveis da vida, do ministério e do governo da Igreja. É uma das marcas de seu pontificado. Ele começou renovando e repropondo o Sínodo dos Bispos. Mas continua havendo muita confusão sobre a natureza dessa instituição permanente que Paulo VI reviveu e recriou no fim do Vaticano II.
O Sínodo dos Bispos é um órgão autônomo que é convocado em assembleia sempre que seu presidente, o bispo de Roma, assim determinar. Ele continua sendo (pelo menos por enquanto) um órgão consultivo sem nenhum poder deliberativo. Muitas vezes, no entanto, os católicos – mesmo no Vaticano e na Secretaria do Sínodo (que NÃO faz parte do Vaticano) – usam uma linguagem descuidada para descrever essa instituição permanente, como se fosse apenas um evento ou uma reunião pontual.
Por exemplo, as pessoas referem-se regularmente ao “Sínodo sobre a família” ou ao “Sínodo de outubro”. De fato, é a assembleia do Sínodo sobre a família ou a assembleia do Sínodo de outubro. Essa é uma distinção fundamental e tem consequências importantes para o possível desenvolvimento (e reforma) posterior da estrutura governamental da Igreja.
Tomás de Aquino, que continua sendo um dos teólogos mais importantes da história da fé cristã, insistiu no cuidado e na precisão do modo como usamos a linguagem e definimos os termos. E a Santa Sé – especialmente no campo da diplomacia e da redação de tratados e documentos etc. – também tem sido muito exigente quanto a isso.
Uma antiga autoridade da Cúria Romana me disse anos atrás: “No Vaticano, você aprende o peso de uma vírgula”. Talvez, antigamente. Hoje, parece que somos bastante desleixados na forma como usamos a linguagem. Mas talvez seja por razões estratégicas ou táticas.
Os clericalistas e machistas na Igreja, em todo o caso, têm sido extremamente deliberativos em relação às palavras e à terminologia na área de linguagem inclusiva. Isso certamente ocorre no mundo de língua inglesa, onde as lideranças da Igreja de mentalidade mais tradicional e doutrinalmente inflexíveis impediram até mesmo os esforços para tornar a “linguagem horizontal” (ou seja, entre os membros da raça humana, em comparação com a “linguagem vertical” que usamos em referência a Deus) mais inclusiva.
Por exemplo, é bastante desnecessário – além de absurdo e talvez até anticristão – continuar usando o termo “homem” quando se fala de toda a humanidade, tanto homens quanto mulheres. A linguagem evolui com o tempo, assim como a nossa compreensão dela e do que ela significa.
A contínua recusa em oferecer traduções – do lecionário, do missal e dos documentos da Igreja – com uma forma sensata e sensível de linguagem inclusiva é um impedimento para ir ao encontro das muitas mulheres e homens que são afastados ou alienados pelo modo mais tradicional e patriarcal de usar a linguagem. Isso inclui as incessantes referências a Deus como “ele”.
E já que estamos falando do uso da linguagem de forma imprecisa (às vezes até deliberadamente), será que deveríamos falar também daqueles que insistem em preservar a chamada missa tradicional em latim, que não foi eliminada, mas reformada (simplificada e reestruturada) após o Vaticano II?
Muitos devotos da missa tridentina afirmam que se trata de preservar o latim. Mas não se deixem enganar. Não se trata disso. A liturgia reformada também pode ser celebrada em latim. De fato, o protótipo para o Missal Romano (que contém as orações da missa) é em latim. É por isso que temos todas essas maravilhosas traduções nas línguas modernas.
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A Igreja precisa limpar sua linguagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU