27 Março 2023
Quem está embriagado com o próprio poder despreza não apenas os corpos, mas também a dignidade das próprias vítimas: e, nessa dança macabra, o uso dos símbolos e a escolha dos tempos nunca são casuais.
O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 24-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um grupo de governantes que se divertem no momento mais equivocado, ostentando com uma mistura de obtusidade e crueldade o desprezo por suas vítimas: nada de novo debaixo do sol.
No livro de Daniel [capítulo 5], a Bíblia conta que Baltazar, rei da Babilônia, mandou trazer para o banquete os cálices saqueados no Templo de Jerusalém: queria profaná-los bebendo e comendo em honra aos ídolos nos utensílios consagrados ao culto do Deus único.
Mas justamente no ápice dessa orgia de ódio, algo acontece. Aparece uma mão, que escreve uma frase em hebraico na parede, que nenhum dos sacerdotes e dos magos da Babilônia consegue decifrar. Então, chamam o profeta Daniel, que a lê assim: “‘Mene mene tekel upharsin.’ Deus contou os dias do seu reinado e já marcou o limite. Deus pesou você na balança e faltou peso”. Naquela mesma noite, os persas liderados por Dario conquistaram a Babilônia e mataram Baltazar.
Rembrandt, “O banquete de Baldazar”, óleo sobre tela, c.1635, National Gallery, Londres (Foto: Wikimedia)
Por volta de 1635, Rembrandt representa o clímax da cena, em um ápice barroco de sua obra. Talvez se inspirando em quadros italianos contemporâneos, ele constrói uma cena particularmente dinâmica e cheia de suspense.
A mão divina acaba de escrever, com letras de fogo, e o rei se vira abruptamente, deixando cair os vasos sagrados judaicos cheios de vinho e provocando uma onda de pânico nos comensais.
A figura de Baltazar é um maravilhoso entrelaçamento de majestade arrogante (as vestes reais sobrecarregadas, o ouro, a coroa em cima do alto turbante) e de terror avassalador: Deus derruba os poderosos de seus tronos, dispersa os soberbos nos pensamentos de seus corações.
E a escrita hebraica não só está perfeitamente correta, mas também organizada do modo como – de acordo com Samuel Menasseh ben Israel, rabino, cabalista e estudioso holandês que Rembrandt frequentava e retratou – deve ter aparecido para confundir os sábios babilônicos: ou seja, não apenas (obviamente) da direita para a esquerda, mas também de cima para baixo.
Apesar de nossa distância da frequentação cotidiana do Antigo Testamento, que na Amsterdã do século XVII unia protestantes e judeus, a mensagem aparece claramente para nós ainda hoje. Quem está embriagado com o próprio poder despreza não apenas os corpos, mas também a dignidade das próprias vítimas: e, nessa dança macabra, o uso dos símbolos e a escolha dos tempos nunca são casuais.
Mas essa embriaguez de poder também leva a não saber ler o que aparece claramente, debaixo dos olhos de todos. E o julgamento finalmente chega.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Rembrandt e a orgia do poder. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU