04 Março 2023
Mesmo com o fim do prazo para reintegração de posse determinado pela Justiça Federal, comunidades Kaingang e Xokleng seguem em terreno retomado no Morro Santana.
A reportagem é de Andrei Arndt, publicada por Humanista, 14-02-2023.
O Morro Santana, na Zona Norte de Porto Alegre, é um território sagrado para as famílias Kaingang e Xokleng. Mas durante o Século XVIII, a ocupação da área pelos portugueses para criação de gado afastou os povos originários. Nos arredores, indígenas eram escravizados pelos bandeirantes e a presença de colonos restringia a circulação dos povos indígenas no morro. Além do bioma Pampa e Mata Atlântica, o Morro Santana comporta animais e nascentes do Arroio Dilúvio.
É o que mostra o relatório do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS. A nota técnica aponta indícios da ancestralidade indígena Kaingang e Xokleng no território batizado pela cacica Kaingang Iracema Nascimento (Gãh Té), como Gãh Ré. O estudo foi realizado em parceria com o programa de extensão Preserve o Morro Santana e o Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento, também da UFRGS.
Um terreno lá é alvo de disputa judicial desde o ano passado, quando começou a “Retomada Gãh Ré”. “O fato de haver uma matrícula, com o nome de um proprietário, de maneira alguma ele elimina o direito indígena”, argumenta o procurador Pedro Nicolau Sacco, do MPF (Ministério Público Federal). Neste momento, porém, paira sobre a comunidade a ameaça de remoção, com o fim do período para saída voluntária, na quinta-feira (9). O Humanista foi até a retomada, acessou o processo judicial e ouviu até um “zelador” e um apicultor que criava abelhas no local para tentar entender o que impede que os direitos indígenas sejam respeitados.
Tudo começou no dia 18 de outubro de 2022, quando indígenas Kaingang e Xokleng retomaram um terreno na rua Natho Henn, número 55. A propriedade a que se refere o promotor Pedro Nicolau Sacco é da empresa Maisonnave Companhia de Participações. No dia 15 de dezembro, a desembargadora Marga Inge Barth Tessler, do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), manteve a reintegração de posse do imóvel. O MPF pedia a suspensão de uma liminar da 9ª Vara Federal de Porto Alegre.
Para a líder da comunidade Kaingang, Gãh Té, o Morro Santana faz parte do equilíbrio ambiental da cidade, que é a segunda com maior presença indígena no Rio Grande do Sul, e é parte da cultura dos seus antepassados. As árvores, arbustos e a biodiversidade protegem o morro. Ela afirma que a notícia de um empreendimento imobiliário com 11 torres, 714 apartamentos e 865 vagas no terreno de estacionamento também motivou a mobilização dos indígenas.
Iracema Nascimento (Gãh Té), a liderança espiritual Kaingang. (Foto: Santiago Martins | Brasil de Fato)
A retomada Gãh Ré resultou no processo de reintegração de posse nº 5056794-75.2022.4.04.7100. “Ao Judiciário, não cabe conceder a posse da terra à Comunidade Indígena Kaingang e Xokleng, em decorrência de reconhecimento de área historicamente indígena sem o devido procedimento de constatação, em que seja garantida a ampla defesa e o contraditório do proprietário do imóvel”, consta no processo.
A área retomada, segundo a liderança, estava desocupada e em péssimas condições de manutenção. O pré-laudo da UFRGS mostra fotografias que comprovam esse cenário e que o território pertence aos indígenas, mas a Justiça não considerou os indícios ao confirmar a reintegração. Gãh Té iniciou uma greve de fome no dia 21 de dezembro, que durou seis dias, em protesto à reintegração de posse.
O advogado Dailor Sartori Junior, do COMIN (Conselho de Missão entre Povos Indígenas), que atua na defesa da Retomada Gãh Ré, também não tem dúvidas sobre a legitimidade do movimento. “Considero que a retomada no Morro Santana tem um diferencial por ser em área urbana e que há um projeto habitacional tentando ser aprovado pela empresa proprietária”, acrescenta.
Retomar o território no Morro Santana pode favorecer também a comunidade da região, não somente aos indígenas. As casas de reza, a meditação, a medicina tradicional, o convívio e o aprendizado da cultura indígena são propostas de Gãh Té para a cidade. “Se um dia ela [a juíza] dizer ao indígena Kaingang, o espaço é de vocês, vai ser um sonho realizado. Um sonho que era possível e aí foi realizado.”
Artesanatos produzidos pela comunidade na Retomada Gãh Ré. (Foto: Andrei Arndt | Humanista)
O processo de demarcação de território indígena está previsto no decreto nº 1775 de 1996, que regulamenta o Artigo nº 231 da Constituição Federal. A demarcação é um dever da União e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e o processo começa com uma demanda da própria comunidade. Indícios da ancestralidade e tradicionalidade são estudados e coordenados por um antropólogo para fazer um mapeamento do território indígena. Quanto aos proprietários, a União somente indenizará as benfeitorias: construções e produções agrícolas. O terreno, independente do tamanho, não é indenizado.
Imagem do terreno em 2014, segundo consta no processo. (Foto: arquivo)
Um espaço amplo, com piscina, quadras de tênis e futebol, voltado para o lazer com a família e para os funcionários do banco Maisonnave. Assim era o terreno da rua Natho Hein, 55, há aproximadamente meio século. Mesmo naquela época, os Kaingang e Xokleng circulavam pelas redondezas para colher suprimentos: ervas medicinais, cipós para artesanato e alimentos.
A Constituição Federal contemplou a demarcação de todos os territórios de povos originários, exceto aqueles que, por alguma razão, foram impedidos de ocupar a área. Nesta situação se encaixa a retomada multiétnica no Morro Santana. A Teia dos Povos, projeto de emancipação coletiva que dá autonomia aos povos originários e luta pelos direitos civis de ribeirinhos, quilombolas e sem terra, afirma que antes da retomada estava abandonada há décadas. Imagens no Instagram mostram os indígenas limpando a piscina enquanto reivindicam a área.
Caixas de abelhas que eram utilizadas no local. (Foto: Nelson João Bacin | arquivo pessoal)
Nelson João Bacin e Jaime Luiz Carlesso, que ocupavam o local antes da retomada, contestam. Nelson é apicultor e meliponicultor (criador de abelhas com e sem ferrão, respectivamente) e proprietário da empresa Salvando Abelhas. Utilizando a área para fins comerciais, seu trabalho incluía recolher enxames de abelhas, que são protegidas pela Lei Federal 9.605/98 em zonas urbanas. Além disso, Bacin também costumava passar as noites na pequena casa construída no local. Jaime, por sua vez, diz que visitava a área eventualmente com sua família para fins de lazer. No processo, os dois são colocados como zeladores do local. Nelson Bacin afirma ter investido mais de R$ 10 mil para iniciar o seu empreendimento no terreno. Ele e Jaime pagavam R$ 500,00 mensais diretamente para a família Maisonnave, segundo eles, para utilizá-lo. “Fui recolher minhas abelhas sem ferrão e a gente tirou as coisas da casa”, conta Nelson sobre as três vezes que esteve na retomada Gãh Ré. Um caminhão foi autorizado a entrar na área e retirar a mobília que era usada por ele. O terreno era frequentado pelo apicultor há dois anos. “Na entrada, a gente roçou a grama baixa, eu organizei a casa, limpamos tudo ao redor. Eu estava preparando uma terra para plantar milho.” Hoje, ele mantém um apiário na Zona Sul de Porto Alegre e segue as atividades de colheita e criação de abelhas como fonte de renda.
Por ser uma questão de direitos dos povos originários, a ação de reintegração de posse iniciou na Justiça Estadual e foi enviada em alguns dias para a Justiça Federal. O procurador Pedro Nicolau Sacco explica que a retomada Gãh Ré se enquadra como “renitente esbulho”, expressão criada pelo ex-ministro Carlos Britto, do STF (Supremo Tribunal Federal), durante o julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em 2009. É quando os indígenas, embora ausentes no território durante a promulgação da Constituição Federal, têm direito a ocupar porque estavam impedidos de acessar a área.
O prazo para a saída voluntária dos indígenas acabou no dia 9 de fevereiro. Agora, a comunidade aguarda a visita de um oficial da Justiça para tentar uma negociação. “Vamos ficar até o fim. Quando a gente entra num lugar é para ficar, não é para entrar e sair. Vamos lutar por isso”, reforça o vice-líder Kaingang, Karindé, filho de Iracema.
Placas e faixas em apoio à Retomada Gãh Ré, no acesso principal. (Foto: Andrei Arndt | Humanista)
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Retomada Gãh Ré: indígenas vivem incerteza em meio a disputa judicial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU