01 Março 2023
"O sistema de água e esgoto, que foi privatizado há 23 anos, não oferece serviços igualmente eficientes para todos os moradores. Dezenas de comunidades e localidades sofrem pela falta de água potável e pela ausência do serviço de esgotamento sanitário. Ademias, os grandes investimentos no sistema de água e esgoto são realizados com recursos públicos, obrigando a população pagar duas vezes: investimento público e tarifas elevadas. Assim, um direito básico é transformado em privilégio daqueles que podem pagar", escreve Sandoval Alves Rocha, doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
A cidade situa-se no centro geográfico da Amazônia brasileira, destacando-se como o maior núcleo urbano da região norte. Os olhos do mundo se voltam para essa região, forjando mitos fora do comum. Do Eldorado e paraíso terrestre dos primeiros cronistas, passando pelo império das “drogas do sertão”; pela ideia de “celeiro do mundo”; pela noção do “pulmão do mundo” até a noção mais recente da megabiodiversidade amazônica. Uma aura mítica revela-se como uma impressão constante sobre a região.
Ao lado de tais atributos, no entanto, são produzidas nessa região situações que chamam a atenção, provocando constrangimentos. No período da borracha, tempo de prosperidade e glamour na cidade de Manaus, os observadores mais atentos podiam perceber uma multidão de pobres vivendo em péssimas condições tanto nas franjas da cidade quanto nos seringais. Euclides da Cunha vislumbrava nesse cenário condições subumanas vividas por pessoas trabalhavam para escravizar-se. Alberto Rangel, seguindo essa mesma linha, percebe na região um Inferno verde.
Nos tempos contemporâneos, tais contradições continuam chamando a atenção para aqueles que querem perceber. Há pessoas que não querem perceber, virando o rosto para essas situações. Preferem ignora-las para evitar qualquer compromisso. Podemos remeter, por exemplo, ao imenso reservatório de água doce da região que convive quase naturalmente com a falta de água potável em grande número de residências ou com um abastecimento precário que afeta as famílias mais pobres da cidade.
O sistema de água e esgoto, que foi privatizado há 23 anos, não oferece serviços igualmente eficientes para todos os moradores. Dezenas de comunidades e localidades sofrem pela falta de água potável e pela ausência do serviço de esgotamento sanitário. Ademias, os grandes investimentos no sistema de água e esgoto são realizados com recursos públicos, obrigando a população pagar duas vezes: investimento público e tarifas elevadas. Assim, um direito básico é transformado em privilégio daqueles que podem pagar.
Outra gritante contradição diz respeito à desproporcionalidade da riqueza produzida na cidade de Manaus e a renda média dos moradores da cidade. Impulsionada pela produção industrial da Zona Franca de Manaus, a cidade ocupa uma destacada posição no ranking de geração de riqueza. Em 2020, a capital amazonense obteve o 5º Produto Interno Bruto do País. Ao lado de tanta riqueza, Manaus é a capital com a segunda menor renda média do Brasil, só ganhando de Macapá, no Amapá. Essa realidade mostra o nível de injustiça pratica na cidade.
Estudo da Fundação Getúlio Vargas, denominado “Mapa da Riqueza”, aponta quais são os estados, capitais e municípios mais ricos e os mais pobres do país. De autoria do economista Marcelo Neri, o estudo mostra que o Norte e Nordeste são as regiões com piores casos de pobreza. Depois de Macapá (AP), Manaus possui a 2ª pior renda média do Brasil, sendo estimada em R$ 1.012,00 reais. Trata-se de um valor escandalosamente desproporcional, quando comparado à riqueza produzida na cidade.
Outra contradição estarrecedora remonta ao ranking das capitais mais arborizadas do Brasil. Sobre esse aspecto, a cidade de Manaus, situada no meio da floresta amazônica está entre as capitais menos arborizadas do país. Dados do IBGE mostram que Belém e Manaus ocupam os últimos lugares nesse ranking. As capitais que ocupam os primeiros lugares são: Goiânia, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Esse aspecto remete a outra contradição desalentadora. Trata-se da grande biodiversidade existente no território amazônico que resiste às políticas antiambientais adotadas na região. Na Amazônia, a vida se reveste de diversas expressões, cada uma delas apresentando dinâmicas próprias, sendo interligadas com a rede do ecossistema. Infelizmente esse potencial para vida tem sido gradualmente destruído. Aos apelos de vida nossa sociedade tem respondido com projetos de morte: desmatamento criminoso, mineração predatória, agronegócio devastador.
Essa necropolitica tem sido adota também nas cidades, que abrigam a maior parte da população humana da região. Em pesquisa publicada recentemente, Manaus aparece ocupando o 3º lugar no ranking das cidades mais violentas. Pesquisa realizada pela ONG mexicana Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal mostra que a capital amazonense elevou a taxa de homicídios em 2022, registrando 50 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Essa taxa é mais alta somente em duas cidades brasileiras: Mossoró (RN) – 63,21 – e Salvador (BA) – 56,68.
É possível averiguar que os gestores de Manaus não têm valorizado as características naturais da cidade. Manaus possui grandes potencialidades, mas enquanto os gestores não pensarem para além dos seus interesses pessoais, seremos a cidade das contradições.
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Manaus e suas contradições. Artigo de Sandoval Alves Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU