A proposta de um cristianismo adulto: um olhar sobre o pós-teísmo. Artigo de Beatrice Iacopini

Foto: PxHere

23 Janeiro 2023

A 163ª edição de Cadernos Teologia Pública publica o artigo da professora Beatrice Iacopini intitulado Diante de um cristianismo moribundo, a proposta de um cristianismo adulto: um olhar sobre o pós-teísmo.

Formada em Filosofia e em Teologia, Iacopini leciona no Instituto Científico Liceo Savoia de Pistoia e colabora com a Escola de Teologia da Diocese de Pistoia. Estudiosa do pensamento de Etty Hillesum, é autora, juntamente com Sabina Moser, de Uno sguardo nuovo. Il problema del male in Etty Hillesum e Simone Weil [Um olhar novo: o problema do mal em Etty Hillesum e Simone Weil] (Ed. San Paolo 2009). Mais recentemente, publicou uma antologia dos escritos de Etty Hillesum, do qual escreveu a introdução: E. Hillesum, Il gelsomino e la pozzanghera [E. Hillesum, o jasmim e a poça] (Florença: Le Lettere, 2018).

Antes de apresentar qualquer proposta sobre um cristianismo adulto, coerente com os desafios de nossa época, Iacopini sonda o surgimento e as implicações deste novo movimento denominado de pós-teísta. Assim sendo, a seguir, destaca-se a primeira parte do artigo.

Pós-teísmo segundo Beatrice Iacopini

O Nietzsche iluminista, que define a religião cristã como arcaica e observa espantado sua permanência em uma época em que a razão examina minuciosamente “qualquer pretensão”, estaria hoje ainda mais estarrecido ao constatar que é precisamente dentro do complexo panorama da teologia cristã que floresce um sentimento idêntico ao dele e que, a um século de distância, destacam-se autores que não teriam nenhuma dificuldade em subscrever suas palavras.

São vozes que, nos últimos anos, têm se canalizado sob a designação de pós-teísmo [1] e que, por enquanto, constituem um conjunto pequeno e composto, e que, do ponto de vista da pesquisa teológica, não trazem nenhuma novidade substancial. Com efeito, o cotejo com as descobertas científicas – motivo de desconfiança cada vez maior frente ao fato religioso – está levando a teologia, desde o século passado, a se tornar mais consciente da necessidade de uma revisão da estrutura tradicional: recordemos, apenas a título de exemplo, a teologia liberal, as teorias de Rudolf Bultmann, o pensamento, embora tendo permanecido in nuce, de Dietrich Bonhoeffer e a teologia da morte de Deus, as sugestões de Paul Tillich e de Pierre Teilhard de Chardin, a quem o pós-teísmo olha com particular atenção.

No entanto, a peculiaridade clamorosa reside na radicalidade – para alguns talvez o extremismo – com que, de dentro do próprio cristianismo, os chamados pós-teístas tiram as consequências do cotejo entre tradição e modernidade, encarregando-se de um estridor considerado já insustentável entre a doutrina tal como se constituiu em seus dois milênios de história e o perfil cultural atual, um estridor que agora ressoa alto também entre os bancos das igrejas, na alma de muitos cristãos que não conseguem mais conciliar a antiga fé em que cresceram com as exigências da razão.

Em grande parte, trata-se de ministros ordenados que, formados nas universidades eclesiásticas e até professores, saem intencionalmente das salas acadêmicas com trabalhos de fácil leitura, muitas vezes desprovidos de notas de rodapé, e usam instrumentos populares como televisões, redes sociais digitais e blogs, sem temerem apresentar a todos, de modo explícito e compreensível, suas próprias conclusões, até chegarem ao aparente paradoxo de pregar o cristianismo desmantelando-o.

O nascente movimento pós-teísta oferece um espaço comum para fermentações de várias naturezas, esforços de atualização e sensibilidades diversas, das quais, no entanto, emergem com clareza alguns elementos compartilhados, entre os quais se destaca a comum convicção de que o cristianismo, para ser entregue ao futuro vivo e vital, necessita de uma profunda obra de reestruturação, a partir da demolição do teísmo, considerado, por um lado, irreconciliável com as evidências científicas atuais e, por outro, nocivo para o desenvolvimento de uma espiritualidade adulta. Os pós-teístas, ao traçarem uma história daquelas grandes narrativas míticas que são as crenças religiosas e da ideia de theós – “esse Ente ou Senhor onipotente pronto para intervir, externo, separado, espiritual, uma subjetividade especial infinitamente inteligente” [2] –, declaram seu status de meras invenções humanas, hoje inadmissíveis e substancialmente inúteis, senão até prejudiciais.

Agora, estamos chegando a pensar que o próprio conceito de ‘Deus’ não é uma obviedade universal e indiscutível. Hoje, vemos claramente que esse conceito é uma construção humana. Como qualquer outro conceito. É um ‘modelo’ que utilizamos para dar uma forma acessível a um mistério percebido com muita dificuldade. Um modelo, um instrumento cognitivo, não uma descrição da realidade que quer evocar, sempre além do instrumento criado pelo ser humano para lhe dar uma forma cognitiva... Mais: há quem acredite que certos conceitos de deus – certamente muito difundidos – são até prejudiciais, porque transmitem ideias profundamente equivocadas à humanidade. [3]

Da negação do Deus teísta, como é óbvio, decorrem corolários que acabam por solapar os próprios fundamentos do cristianismo tal como ele foi estruturado ao longo da história: por exemplo, a negação de plausibilidade a qualquer revelação presumida e, portanto, às pretensões de verdade do corpus bíblico e dos dogmas que, sustentam os pós-teístas, fazem da religião um sistema de crenças apto a manter o ser humano em uma condição de heteronomia perene, inaceitável para uma humanidade que já saiu da condição de menor, mas também depreciável do ponto de vista moral.

Assim, o pós-teísmo também envolve como consequência a superação da religião, considerada uma invenção funcional para a era neolítica em que nasceu, mas inadequada e substancialmente inservível para a humanidade adulta e autônoma do pós-iluminismo. O paradigma pós-teísta, portanto, caminha de mãos dadas com o paradigma pós-religioso.

Resumamos com as palavras de Paolo Gamberini: [4]

As religiões são uma relíquia do desenvolvimento da consciência humana que necessita uma superação. A ideia de um Deus supramundano, a quem é confiada a vida do universo e do ser humano, nasceu da necessidade de se ter um Deus que explicasse todas as coisas que existem e acontecem no mundo, em particular, que desse sentido a uma vida após a morte. Agora, a necessidade de se ter um Deus assim forjado não existe mais. A consciência religiosa das novas gerações mostra-se mais secularizada, agnóstica e indiferente: parece que não sente mais a necessidade do transcendente. Não estamos apenas além-de-Deus ou depois-de-Deus, mas também além da pergunta sobre a existência de um Deus assim (teísta). Estamos na era do pós-teísmo. A atitude pós-teísta é ao mesmo tempo a-teísta. [5]

Ateísmo que não significa necessariamente negação de valor ao cristianismo e, mais em geral, à esfera espiritual do ser humano: em uníssono, embora com tonalidades diferentes, os pós-teístas declaram que, se a religião está morrendo – com as pretensões de verdade e as diferentes crenças que ela impõe, as instituições coercitivas, o convite à fé como submissão a Deus e a seus supostos intérpretes –, a espiritualidade certamente não morre, pois é conatural ao ser humano; pelo contrário, a crise em curso poderá ser profícua para ela.

Notas

[1] O termo, nascido na língua inglesa, não é novo: parece ter sido usado pela primeira vez, ainda um século atrás, na forma de adjetivo pelo pastor e professor estadunidense Frank Hugh Foster (1851-1935).
[2] Cf. J. M. VIGIL, Rivisitando la questione di Dio. Verso una visione non teista, in: J. ARREGI, C. MAGALLÓN, M. J. RESS, G. SQUIZZATO, J. M. VIGIL, S. VILLAMAYOR, Oltre Dio. In ascolto del Mistero senza nome, Coleção “Oltre le Religioni”, San Pietro in Cariano: Gabrielli, 2021, p. 80.
[3] Cf. J. M. VIGIL, “Il teismo, un modello utile ma non assoluto per ‘immaginare’ dio”, Adista Documenti, 80, 23 out. 2010.
[4] Nascido em Ravena em 1960, Paolo Gamberini está na Companhia de Jesus desde 1983; professor associado da Universidade de San Francisco (EUA), é autor de diversas publicações, incluindo um manual de teologia trinitária, e é muito ativo em nível pastoral e em rede.
[5] Cf. P. GAMBERINI, Deus duepuntozero: ripensare la fede nel post-teismo, San Pietro in Cariano: Gabrielli, 2022, p. 14.

O artigo completo pode ser acessado por aqui.

 
Entrevistas com Beatrice Iacopini publicadas pelo IHU

Artigos de Beatrice Iacopini publicados pelo IHU

Matérias sobre Beatrice Iacopini publicadas pelo IHU

Para aprofundar as reflexões do leitor sobre essas questões, com um intenso e plural debate, o Instituto Humanitas Unisinos promoveu o Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas, o qual aconteceu, através de conferências online, no período de 03 de maio a 01 de julho de 2022.

Nas últimas décadas estudos, pesquisas e análises sobre as religiões cada vez mais tratam de reconhecer que as grandes transformações em andamento no mundo atual, nas mais diversas esferas da vida pública, produzem impactos e transformações profundas também sobre as tradições religiosas em geral e sobre o cristianismo de modo particular. 

Não é um dado novo nas estatísticas internacionais, no caso do cristianismo, os sinais de um crescente abandono da religião. No caso da Igreja católica, já não se faz necessário um estudo científico para observar que o esvaziamento das Igrejas, redução e/ou ausência das juventudes, apatia religiosa e/ou desinteresse religioso, entre outros.

Impõe-se com nova relevância a necessidade de analisar, debater e apontar perspectivas a respeito das possibilidades, chances e desafios para apresentar a pessoa de Jesus Cristo, com sua mensagem, de forma que faça sentido hoje.

A Programação do Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas teve como proposta transdisciplinarmente as condições e possibilidades da existência cristã e eclesial e da teologia no contexto das transformações socioculturais e religiosas que resultam numa caracterização da sociedade e da cultura atual como pós-teísta, pós-religiosa e pós-cristã.

Destaca-se algumas conferências do Ciclo que trataram diretamente do pós-teísmo:

 

Santiago Villamayor

O pós-teísmo como superação dialética do teísmo

 

Jesús Martínez Gordo

Crer em Deus. A fé cristã num mundo pós-teísta

 

José María Vigil

A questão de Deus num contexto pós-teísta

 

Paolo Gamberini

A Teologia cristã em paradigma pós-teísta

 

Paolo Scquizzato

Espiritualidade cristã em perspectiva pós-teísta

 

 

Ecos do debate sobre o pós-teísmo também podem ser escutados no XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transformação. Um evento com o propósito de analisar transdisciplinarmente o sentido, os desafios e as possibilidades para o cristianismo, a Igreja, a teologia e fé cristã em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição, um mundo (pós)pandêmico.

O XX Simpósio Internacional IHU iniciou em 04 de junho e teve palestras mensais ao longo do ano de 2021, de forma virtual e gratuita. Todas as atividades foram transmitidas com a opção bilíngue pela plataforma Zoom, e em português pelo canal IHU Comunica do Youtube, e nas páginas do IHU no Facebook e no Twitter.

 

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