16 Janeiro 2023
"Essas perguntas são, na verdade, o fundamento da crítica racionalista moderna da fé cristã e de todas as religiões, dos séculos XVII e XVIII. Tais críticas na verdade não negavam a presença do divino, mas duvidavam que o divino estivesse (ou pudesse estar) encerrado na Bíblia ou nos sutras. Provavelmente a dúvida racionalista nascia também do encontro com a cultura chinesa que, na época, muitas vezes era considerada mais 'avançada' que a ocidental, mas não era cristã", escreve o sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin da China, em artigo publicado por Settimana News, 14-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Poderia ser uma ponte que falta, um irmão que falta entre o bilhão de católicos ou ditos católicos, a Igreja e os homens de outras religiões, outras escrituras que dão outros nomes aos seus deuses, a busca de uma teologia além das escrituras. Não que elimina as escrituras, mas vai para o espaço até então vazio não ocupado pelas escrituras, o interstício sutil, mas profundo, que separa um livro do outro na estante de uma livraria. São aqueles espaços que compõem uma biblioteca e que separam, mas também unem toda a riqueza das escrituras.
Talvez a Igreja Católica, como a maior religião unitária do mundo, além de cuidar de sua escritura, possa/deva pensar também em construir a biblioteca para todas as escrituras das crenças.
A pergunta dos não cristãos é simples: por que acreditar na Bíblia e não no Mahabharata e no Ramayana, os textos sagrados hindus? Por que não o Alcorão, ou os sutras budistas, ou o inefável Tao Teching? E por que um texto escrito e não as palavras de um xamã da tundra siberiana ou os belos e convincentes sonhos de John Smith?
Essas perguntas são, na verdade, o fundamento da crítica racionalista moderna da fé cristã e de todas as religiões, dos séculos XVII e XVIII. Tais críticas na verdade não negavam a presença do divino, mas duvidavam que o divino estivesse (ou pudesse estar) encerrado na Bíblia ou nos sutras. Provavelmente a dúvida racionalista nascia também do encontro com a cultura chinesa que, na época, muitas vezes era considerada mais "avançada" que a ocidental, mas não era cristã.
Então, pela primeira vez em muitos séculos, a cultura ocidental não encontrava “pagãos”, seguidores de cultos menos estruturados que os cristãos e pertencentes a sociedades ainda menos estruturadas. Em vez disso, encontrava a China, um imenso império, pátria de um terço da riqueza global, ordenado e superestruturado, com uma cultura extremamente sofisticada, mas com uma organização diferente do divino, essencialmente impermeável ao cristianismo, apesar dos esforços e sucessos sem precedentes dos missionários de todas as ordens e graus.
A mesma dúvida se multiplicaria amanhã se uma raça alienígena, mais avançada e civilizada do que nós, "nos descobrisse", chegasse à terra e eles não fossem cristãos, mas acreditassem em Manitu. A humanidade terá então que se converter em massa? A Bíblia e o evangelho seguirão o caminho do Avesta, as escrituras sagradas da fé zoroastriana quase extinta depois de ter dominado os mundos romano, grego e persa por séculos?
Hoje, embora o ateísmo militante que acompanhou boa parte do século passado tenha desaparecido como a neve ao sol, voltou uma busca quase bramosa do divino por parte de todos. Mas a crítica iluminista, fundadora do moderno, permanece: por que acreditar em um texto e não na realidade? Mesmo que seja preciso escolher um texto, por que não a Bíblia ou o anúncio de Manitu?
De fato, a teologia parte do Evangelho, da Bíblia. Mas como se pode acreditar nisso? É preciso um salto de fé, uma iluminação que, para alguns, pode ser budista, para outros uma visão xamânica ou um sonho, uma ruptura com a realidade cotidiana e a razão "normal". Pode ser por uma tensão literária: o Evangelho, ou o Alcorão, ou os sutras, ou o Ramayana, falam à alma melhor do que outro.
Ou há uma questão de conveniência: a conversão abre as portas para Paris, como foi para os huguenotes ou os vikings, ou porque aquela religião se adapta melhor do que outras ao governo do povo.
Ou há uma questão de herança: a maioria simplesmente herda a religião de seus pais, pela qual sente uma afinidade de afeto, mas também cultural, e opta por não mudar, porque a mudança é desorientadora, enquanto a religião é um refúgio para a alma, portanto, conservação.
Mas, talvez, haja também razões "científicas" mais modernas para a escolher o catolicismo no lugar de outras religiões, sempre respeitando a liberdade de cada um.
Uma é que a Igreja Católica é a maior religião unitária do mundo e é a máxima potência para o bem mundial, sem qualquer interesse próprio, mas com interesse no bem de todos. Portanto, não há outra organização maior para fazer o bem, que faça o bem para todos, mesmo para aqueles que querem o mal.
A segunda razão, em parte ou totalmente compartilhada também com outras crenças, é a beleza benéfica do deus que não pede sacrifícios, como tem sido o caso dos cultos ao longo da história da humanidade, mas que se oferece em sacrifício em sua carne para homens. Inverte e acalma o medo dos homens pela vida, mesmo mais que pela morte; sustenta, porque fala que Deus está do nosso lado.
Além disso, em um momento de forte dúvida de cada um sobre sua identidade e seus erros, a Igreja oferece confissão melhor e mais do que outras, uma versão antiga e religiosa das agora populares várias formas de psicoterapia laicas.
Esses são as vantagens práticas e a-bíblicas, boas tanto para os crentes na Bíblia quanto para os que não creem.
Neste ponto, pode-se ler as escrituras como um manual de instruções para a alma.
Deus existe? Existe o divino? É preciso sentir. E sentir é mais importante do que saber. Na verdade, para lembrar de algo, para saber de algo, nós o associamos a uma emoção, a um sentimento. A antiga pedagogia ligava à dor: você não lembra, então eu vou te bater. A pedagogia moderna liga a aprendizagem ao prazer: ligo uma memória a uma diversão, a um jogo.
A melhor é aquela em que estão ambos, o tapa doloroso dado pelo pai que te olha com afeto.
Isso poderia ser a base de uma teologia na qual os católicos falam aos não católicos, às religiões não abraâmicas?
Talvez, afinal, o cristianismo tenha nascido disso. Na verdade, Paulo não fez isso? Ele nunca conheceu o Jesus da história, no entanto teve um papel no cristianismo superior ao dos doze apóstolos. Além disso, seus ensinamentos foram um canal para os discípulos. Isso porque forneceu um canal cultural no qual a personalidade de Jesus era adaptada àquele mundo.
Houve a passagem na cultura grega (grego era o texto do Novo Testamento), mas também um ressalte em suas epístolas da dialética bem-mal talvez menos acentuada nos Evangelhos. A dialética do bem-mal marca a fé zoroastriana então dominante nos impérios romano e persa.
Por outro lado, a figura de Jesus salvador vista da Índia se assemelha à de um Buda. Na verdade, aqui há também dois elementos históricos. Os indianos têm uma tradição segundo a qual Jesus, de quem nada sabemos desde seu nascimento até seus 30 anos de idade, viajou por muito tempo na Índia e aqui teve a iluminação e voltou para levá-la para sua casa conjugando-a com sua fé hebraica de origem.
O segundo elemento é uma bizarrice histórica: o budismo, a começar pelo primeiro século da era cristã, espalhou-se da Índia para o Oriente, mas não chegou ao Ocidente; em vez disso, aqui se difundiu o cristianismo.
Dois mil anos depois, com o ressurgimento da Ásia e de outras culturas, pode ser o momento de pensar novamente em tantas coisas?
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Perguntas sérias sobre cristianismo e religiões. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU