“A teologia usa a palavra 'mistério' para nomear verdades cuja riqueza está além da compreensão humana, fontes que não secam por mais que saiam delas. E Francisco está constantemente lembrando à Igreja que existe um tal 'mistério pastoral', uma profundidade da terna e compassiva proximidade de Deus conosco que nunca deixaremos de explorar”, escreve o jesuíta estadunidense Sam Sawyer, jornalista, editor-chefe da revista America, 15-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Pastoralidad”. O Papa Francisco usou essa palavra três vezes na entrevista exclusiva ao grupo America, dos jesuítas estadunidenses. Traduzimos para o inglês duas vezes como “pastoral dimension” [dimensão pastoral] e uma vez como “pastoral care” [acompanhamento pastoral], mas uma tradução mais literal seria algo como “pastorality” – porque pastoralidad não é uma palavra normal em espanhol, assim como pastorality não é em inglês [na tradução em português, publicada pelo IHU, utilizou-se o termo pastoralidade]. No entanto, assim que a ouvimos, sabemos o que significa, ou pelo menos pensamos que sabemos. E então descobrimos que ainda estamos pensando nisso semanas depois.
Amigos, familiares e colegas aqui na America, todos me perguntaram como foi conhecer o Papa Francisco. Acho que eles esperavam, e até certo ponto eu também, algum tipo de consolo espiritual notável ou uma onda de sentimentos em resposta ao encontro com o sucessor de Pedro. No entanto, não foi esse o caso. Como minha colega Kerry Weber escreveu em seu artigo on-line descrevendo os “bastidores” da entrevista (28 de novembro, disponível em inglês neste link), a coisa mais surpreendente sobre conhecer Francisco foi como é normal estar com ele.
Isso não quer dizer que conhecer o papa e conversar com ele não foi consolador e profundo; claro que foi. No entanto, o que percebi pessoalmente, o que percebi faltar em todas as reportagens que li ao longo dos anos sobre o que Francisco tem dito, não foi uma aura geral de santidade, mas sim uma qualidade de atenção e foco, um vislumbre de onde o próprio Francisco está consciente do santo mistério.
E é por isso que tenho pensado na pastoralidad nas últimas duas semanas. Depois que saímos da entrevista, verifiquei com amigos e colegas fluentes em língua espanhola. Eu me perguntei se em espanhol simplesmente tinha uma palavra para “pastoralidad” que o inglês só poderia se aproximar, mas descobri que Francisco estava procurando a palavra mesmo em seu espanhol nativo. Percebi isso mesmo durante a entrevista – porque, ao falar da pastoralidad e, mais amplamente, ao falar do trabalho dos pastores, Francisco tem uma intensidade e uma reverência que uma transcrição não pode captar.
É semelhante a ouvir um amigo tentar descrever uma experiência poderosa em oração. Ou ouvir alguém tentar expressar o sentimento de um sacramento. Mesmo que as palavras não possam transmitir totalmente o sentimento, e o sentimento esteja apenas apontando para uma realidade maior, ainda há algo poderosamente sagrado, algo que exige reverência, ao ouvir alguém tentar nomeá-lo.
Foi assim que me senti quando o Papa Francisco falou sobre pastoralidad.
As considerações pastorais podem muitas vezes ser tratadas como secundárias – uma camada de acomodação a restrições e limites práticos depois que o verdadeiro trabalho teológico é feito em um nível superior. E tais adaptações práticas são necessárias e vitais. Mas a “pastoral dimension”, como quer que a traduzamos, é muito mais do que isso.
Francisco tem falado com frequência sobre uma tríade que ele chama de “estilo de Deus”: proximidade, compaixão e ternura. Ele quer dizer que é Deus quem pastoreia primeiro; o Pai aproxima-se da nossa humanidade no dom do Filho e o Espírito Santo atrai-nos para o seu amor. Esse é o modelo – ou melhor, o mistério – que a pastoralidad tenta, hesitantemente, nomear. Em vez de considerações práticas que “limitam” verdades teológicas absolutas, a própria proximidade pastoral de Deus conosco e nosso chamado para incorporarmos essa compaixão é a verdade teológica central à qual o Papa Francisco continua voltando.
A teologia usa a palavra “mistério” para nomear verdades cuja riqueza está além da compreensão humana, fontes que não secam por mais que saiam delas. E Francisco está constantemente lembrando à Igreja que existe um tal “mistério pastoral”, uma profundidade da terna e compassiva proximidade de Deus conosco que nunca deixaremos de explorar.
Mas é difícil sustentar tal atenção. Mesmo nesta entrevista, o próprio Francisco nem sempre se mantém fundamentado na resposta pastoral. Em resposta a uma pergunta sobre o que diria a uma mulher que se sente chamada ao sacerdócio, falou sobre os princípios petrinos e marianos na Igreja. Oxalá a sua atenção tivesse sido mais concretamente pastoral, centrada tanto em acompanhar uma mulher nessa experiência como em traçar um quadro teológico para a compreender. Não porque eu assuma que tal acompanhamento levaria necessariamente a uma resposta teológica diferente, mas porque uma profunda atenção pastoral à pessoa nos leva para mais perto de Deus.
E Francisco está sempre nos chamando para nos aproximarmos de Deus, prestando atenção em como Deus trabalha conosco. Em sua resposta sobre a polarização, Francisco disse que o Espírito “não reduz tudo a um valor”, mas “harmoniza as diferenças”. Sua atenção e reverência pelas realidades pastorais me ajudaram a ver que o Espírito não faz essa harmonia escrevendo a partitura completa antes do tempo, mas fazendo-nos cantar juntos.