25 Novembro 2022
Autointitulada guru espiritual e life coach, Katiuscia Torres teria usado redes sociais para atrair jovens brasileiras.
A reportagem é de Eloá Orazem, publicada por Brasil de Fato, 24-11-2022.
A prisão da brasileira Katiuscia Torres nos Estados Unidos reacendeu a discussão sobre tráfico humano no país mais rico do mundo. Mais conhecida como Kat Torres, a mulher de 34 anos está sob custódia em um presídio de Minas Gerais, onde aguarda julgamento por diversos crimes – entre eles o de trabalho análogo à escravidão.
Para a criminologista Daniela Peterka-Benton, diretora acadêmica do Centro Global de Tráfico Humano e professora de direito na Montclair University, o problema deste caso começa justamente aí: na nomenclatura. "Sempre houve um mal-entendido sobre o que é tráfico de pessoas. Acho que quando você diz 'tráfico de pessoas', quase todo mundo imediatamente associa à exploração sexual, mas há tantas outras formas de exploração, entre elas a de trabalho", diz em entrevista ao Brasil de Fato.
Embora não tenha avaliado os detalhes do caso envolvendo a brasileira Kat Torres, a pesquisadora encontra diversos elementos problemáticos nesta história. Um deles é o uso das redes sociais.
Foi pela internet que Kat Torres construiu sua fama e foi também por ela que a perdeu. Autointitulada guru espiritual e life coach, a brasileira ganhava dinheiro vendendo planos de autoajuda pela rede. Foi também pela internet que Kat conheceu as jovens Letícia Maia e Desirée Torres, com 21 e 26 anos, respectivamente. Ambas as garotas teriam sido incentivadas a ir para os Estados Unidos como au pair (babás), por conta da facilidade da obtenção do visto. Uma vez no país, elas deixariam o programa para trabalhar com Kat – e assim o fizeram.
Depois de meses sem contato com os familiares, os pais de Letícia abriram um processo de pessoa desaparecida, e passaram a postar sobre o sumiço da filha nas mídias sociais. Com a rápida viralização do caso, todas as mentiras de Kat vieram à tona. As três brasileiras foram presas no último dia 2 de novembro, quando tentavam entrar no Canadá.
"As redes sociais são um terreno fértil para uma série de teorias conspiratórias", afirma Bond Benton, professor de comunicação da Montclair University. Segundo ele, o problema da viralização de histórias como essa é que se passa a associar o tráfico humanos a casos muito específicos. "É por isso que vemos por aí tantos memes de pessoas dizendo que viram algum maluco numa van, sequestrando crianças de um estacionamento. Isso é compartilhado sem nenhuma análise, e gera uma enorme desinformação sobre como esses casos realmente se dão", acrescenta.
O melhor exemplo, de acordo com o professor Benton, é a teoria de conspiração QAnon, que surgiu a partir de um boato que ligava uma pizzaria na capital dos Estados Unidos a uma rede de pedofilia. Apesar de absurda para muitos, essa teoria conspiratória ganhou tanta força que contribuiu para a invasão do Capitólio, no início do ano passado.
"O que todas essas teorias da conspiração têm em comum é que elas, geralmente, colocam a culpa em algum grupo minoritário. Sejam gays ou judeus, é sempre o 'outro' que está atrás dos nossos filhos. Essa forma abstrata de vilanizar pessoas que são historicamente perseguidas é um verdadeiro perigo", e finaliza, "no caso do QAnon, a teoria realmente evoluiu para dizer que pessoas homossexuais e pessoas transgêneros estão 'atrás' de seus filhos. E eu acho que vimos, nos Estados Unidos, o resultado infeliz disso: em uma boate gay, onde pessoas estavam bebendo inofensivamente e curtindo sua noite, cinco foram mortos e 18 ficaram feridos".
O professor da Montclair University cita de uma boate frequentada pelo público LGBTQIA+ que foi alvo de um ataque de um homem armado em Colorado Rapids, nos EUA.
Ainda segundo Benton, essa estratégia de culpabilizar um grupo específico de pessoas obscurece o problema real do tráfico de pessoas, além de demonizar e prejudicar populações muito vulneráveis.
Apesar das mazelas comprovadas desse crime, sua incidência está em franca ascensão. Dados consolidados pela agência Statista mostraram que, entre 2008 e 2019, o número de vítimas do tráfico humano, em todo mundo, mais do que quadruplicou: passou de 30 mil para quase 120 mil.
Os Estados Unidos, apesar de todo o seu poderio, continuam com sangue nas mãos, e sofrem nos dois lados da moeda, já que o país é um dos principais pontos de origem e destino de pessoas traficadas. De acordo com um relatório divulgado pelo Departamento de Estado, os três principais países de origem das vítimas de tráfico humano, em 2018, foram Estados Unidos, México e Filipinas. E o país parece ver uma situação melhor quando o assunto é o destino de pessoas exploradas: a estimativa é que quase 200 mil pessoas sejam traficadas anualmente, mas os casos são subnotificados. Em 2019, por exemplo, foram reportados "apenas" 11,5 mil casos de tráfico de pessoas nos Estados Unidos.
Esse fato não chega como novidade para o casal Benton: no país mais capitalista do mundo, o tráfico humano pode significar lucro. "Quando pedimos para que organizações internacionais estimem quanto dinheiro está envolvido no tráfico humano, eles acreditam que seja algo equivalente ao tráfico de drogas ou de armas, mas não colocam uma cifra exata porque os dados que temos não fazem justiça à dimensão desse sistema", diz Peterka-Benton.
Por isso, segundo a pesquisadora, é importante que cada um de nós, como consumidores, tenhamos bom senso e consciência na hora de fazer compras, e se questionar preços extremamente baratos. "Na próxima vez em que você se deparar com uma etiqueta muito abaixo do valor de mercado, se pergunte: de onde vem esse produto? Quais as possíveis explorações que podem ter ocorrido neste caminho?"
Para ela, é somente a tomada de consciência e eventual pressão legislativa que pode mudar o jogo do tráfico humano. Porque, pelo menos por enquanto, esse crime, que responde muito bem à lógica simplista do capitalismo, de oferta e demanda, parece compensar para muita gente.
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Como a prisão de uma brasileira nos EUA força o país a reavaliar seu problema de tráfico humano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU