03 Novembro 2022
O Pe. Bernardo Gianni está acostumado a observar o mundo de uma “porta do céu”. Haec est Porta Coeli, reza a inscrição em mármore na basílica florentina de San Miniato al Monte, debruçada na colina com vista para a cidade de La Pira e Dom Milani.
Desde que, em 2019, o Papa Francisco o chamou para liderar os exercícios espirituais quaresmais da Cúria Romana, o abade florentino tornou-se um ponto de referência espiritual e cultural mesmo fora da cidade de Florença.
Há algumas semanas foi um dos promotores de um apelo contra o aumento dos gastos militares que definia a paz como um bem grande demais para ser deixado ao critério dos senhores da guerra. O que ele percebe hoje é "uma depressão ética, moral, civil e política que fez muitos aceitarem a proliferação e o uso de armas, como se fosse algo bom e justo", explica.
“Mas a fidelidade ao Evangelho e ao Magistério da Igreja, além da letra da Constituição italiana, impõe um não definitivo e inequívoco aos instrumentos de morte”. Tal como o afirmado pelo evento nacional Europa para a Paz de 5 de novembro, promovido por um vasto conjunto de organizações do mundo associativo e sindical, secular e católico.
A entrevista com Bernardo Gianni é editada por Riccardo Michelucci, publicada por Avvenire, 01-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há poucos dias, durante o encontro internacional de paz no Coliseu, o Papa Francisco disse que “não somos neutros, mas estamos alinhados pela paz”. Muitos, no entanto, persistem em não o ouvir.
A sua é uma voz tipicamente profética que se distancia de um imediatismo de análise histórica e política que levaria à reação e ao instinto. O profeta, justamente pela desmedida que o habita, tem um olhar que tende a torná-lo uma pessoa pura, quase apocalíptica no bom sentido, ou seja, reveladora do próprio sentido da história relida em Cristo, que só pode ser a paz, a reconciliação, a justiça e a afirmação dos direitos dos inocentes. O Papa é o único que tem a coragem de buscar outras soluções em tempos de crise política e de desideologização generalizada.
Por que você sentiu pessoalmente a necessidade de lançar um apelo contra o aumento dos gastos militares?
Porque o Parlamento tinha assumido que não havia outra modalidade para tentar resolver a crise que se seguiu ao ataque russo. Mas o Evangelho nos lembra que o uso de armas não é bom e justo. Isso não significa subestimar os sofrimentos da população na Ucrânia, nem levantar nossa consciência de europeus sobre a necessidade urgente de pôr ao reparo a vida dos indefesos sob ataque. As armas só podem agudizar as graves consequências para os civis e o ressentimento entre os povos. Mas, infelizmente, nos últimos anos, a cultura constitucional de paz foi desgastada ainda mais, se não realmente erodida, em nosso país.
O uso de armas é um dilema para crentes e não crentes. Mas os primeiros deveriam ter a bússola do Concílio, da Pacem in terris e de muitos outros momentos em que o conceito de "guerra justa" foi deixado de lado. No entanto, alguns ainda tendem a esquecê-lo.
Acredito que às vezes prevaleça uma leitura um tanto maniqueísta que prefere o atalho da violência e se ilude em poder perseguir, por meio dela, o suposto bem absoluto. Mesmo vendo claramente as culpas do agressor, o primado da razão deve sempre prevalecer porque a guerra, como disse o Papa Francisco, sempre deixa o mundo pior do que o encontrou. Sem considerar que neste caso, a cada minuto que passa aumentam também os riscos de um conflito nuclear de consequências incalculáveis. Não entendo por que, com o mesmo cuidado meticuloso com que nos rearmamos, não se querem ativar outros caminhos que possam nos trazer de volta a uma primazia da palavra, dos gestos e obviamente também dos juízos em elação à história e aos prepotentes.
Qual é a causa de tudo isso e qual poderia ser o remédio?
Às vezes tenho a sensação de que, sobretudo depois destes meses de pandemia, a crise da política abafa as nossas consciências, fazendo-nos recolher em nossos pequenos cercadinhos, com olhares cada vez mais estreitos. Na minha opinião, a pandemia e a guerra estão inter-relacionadas porque são ambos aspectos da crise da polis da qual, no entanto, a profecia pode nos salvar. Não apenas de uma perspectiva bíblica e espiritual, mas também no plano ético.
De fato, existe também uma profecia leiga que consiste na capacidade de antecipar o futuro, custe o que custar. Em vez disso, continuamos a falar de maiorias políticas, parando na sala parlamentar, esquecendo que mesmo nas últimas eleições houve uma forte abstenção que obrigaria a todos a ter consciência de que as instituições já não envolvem mais uma fatia consistente da população nas formas tradicionais da política. Há uma abstenção do voto, mas também da própria capacidade de enfrentar a realidade e os seus problemas.
Vinte anos atrás, o povo da paz saiu às ruas em todo o mundo. Por enquanto, apenas a Itália conseguiu organizar uma grande manifestação. O que mudou?
Hoje há um clima cultural e social de ressentimento entre as pessoas que está relacionado ao que assistimos sobre a questão das vacinas e dos passaportes vacinais.
Acredito que a desagregação do tecido social e a pobreza generalizada são os mais importantes detonadores dessa contraposição. Agora, mais e mais pessoas, principalmente italianas, recorrem ao nosso mosteiro em busca de ajuda, porque estão com fome, no verdadeiro sentido da palavra.
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“Escutar a voz profética do Papa. Não ao atalho da violência”. Entrevista com Bernardo Gianni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU