16 Setembro 2022
“Nunca justificamos a violência. Não permitimos que o sagrado seja explorado pelo que é profano. O sagrado não seja suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade!”. Essa é uma passagem chave no discurso proferido pelo papa durante a sessão plenária do VII Congresso de líderes das religiões mundiais e tradicionais em andamento em Nur Sultan, capital do Cazaquistão, para onde Bergoglio esteve nestes últimos dias. O apelo feito por Francisco parece ecoar outros apelos semelhantes lançados por seus antecessores, de Wojtyla a Ratzinger, em referência à exploração das religiões por grupos terroristas islamistas ou pelos setores mais fanáticos de várias confissões, incluindo aquela cristã.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Domani, 15-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em parte, é certamente assim e o próprio pontífice argentino lembrou isso em seu discurso. E, no entanto, as palavras de Bergoglio parecem ecoar o que ele mesmo disse sobre o patriarca ortodoxo russo Kirill em uma entrevista ao Corriere della Sera imediatamente após o início do conflito na Ucrânia: ou seja, não se transformar no coroinha do Putin. Que poderia ter parecido uma piada venenosa contra o chefe da Igreja Ortodoxa culpado de ter defendido com demasiado ardor as razões do Kremlin para justificar a invasão russa.
Na realidade, o discurso é mais amplo, pois há tempo o Papa Francisco insiste na separação clara entre trono e altar, entre poder político e religião, na necessidade de não haver mistura ou ambiguidade entre os dois âmbitos, especialmente temendo aqueles líderes que alimentam os impulsos nacionalistas e populistas tentando se credenciar como paladinos do cristianismo, talvez entendido como imagem de Nossa Senhora levada às ruas ou na forma de um catolicismo ideológico brandido como extrema defesa de identidades fechadas e, em última análise, sufocantes e autoritárias. Mas é precisamente essa visão do cristianismo que, disse Francisco em várias ocasiões, não existe mais, nem como poder temporal, nem como cultura predominante ou mais difundida no Ocidente.
Por isso, o papa pede à Igreja, em primeiro lugar, que se abra ao diálogo com a contemporaneidade, e depois mude o paradigma religioso no plano geral, como fez em Nur Sultan diante dos líderes de tantas religiões diferentes, aos quais se dirigiu nestes termos: "Diante do mistério do infinito que nos domina e nos atrai, as religiões nos lembram que somos criaturas: não somos onipotentes, mas mulheres e homens a caminho da mesma meta celeste".
Nesse contexto, o papa enfatizou o valor da liberdade religiosa, colocou no mesmo plano o fundamentalismo e o ateísmo de Estado (em referência explícita à passada experiência soviética do Cazaquistão), reivindicou um papel público para a voz dos crentes nas sociedades modernas sem que isso torna-se uma imposição ou proselitismo agressivo.
E depois, diante dos líderes espirituais do islamismo, cristianismo, budismo, judaísmo, hinduísmo, taoísmo, zoroastrismo, xintoísmo, ao traçar os desafios globais que dizem respeito às religiões e ao nosso tempo, indicou quatro pontos bem específicos: a pandemia que mostrou as muitas desigualdades que atravessam o mundo e a paz como um bem universal a ser alcançado também por meio de “negociações pacientes”.
“Nas últimas décadas - recordou Francisco a tal respeito - o diálogo entre os líderes das religiões incidiu principalmente sobre essa temática. No entanto, vemos os nossos dias ainda marcados pelo flagelo da guerra, por um clima de exasperados confrontos, pela incapacidade de dar um passo atrás e estender a mão ao outro. É preciso um impulso e é preciso, irmãos e irmãs, que venha de nós”.
Em seguida, indicou entre as prioridades aquela do "acolhimento fraterno" porque "nunca como agora assistimos a grandes deslocamentos de populações, causados por guerras, pobreza, mudanças climáticas, pela busca de um bem-estar que o mundo globalizado nos permite conhecer, mas ao qual é muitas vezes difícil ter acesso”.
Não só. Segundo o papa, “está em curso um grande êxodo: das áreas mais desfavorecidas, tenta-se alcançar aquelas mais abastadas. Vemos isso todos os dias, nas várias migrações ao redor do mundo”.
“Não é dado de noticiário - acrescentou o pontífice - é um fato histórico que exige soluções compartilhadas e clarividentes. Claro que é instintivo defender as próprias seguranças adquiridas e fechar as portas por medo; é mais fácil suspeitar do estrangeiro, acusá-lo e condená-lo mais que conhecê-lo e compreendê-lo”. Por fim, Francisco falou do “cuidado da casa comum”, porque “é a mentalidade de exploração que devasta a casa em que vivemos. Não só isso: leva a eclipsar aquela visão respeitosa e religiosa do mundo desejada pelo Criador”.
O tema da busca da paz e do caminho da negociação para resolver os conflitos voltou no final da missa que Francisco celebrou na grande área do Expo Grounds em Nur Sultan diante de alguns milhares de fiéis; o papa voltou a falar da Ucrânia, mas também das tensões que surgiram nos últimos dias entre a Armênia e o Azerbaijão em torno da disputada região de Nagorno-Karabakh.
“Fiquei sabendo com preocupação - disse Francisco - que nestas horas surgiram novos focos de tensão na região do Cáucaso. Continuemos a rezar para que, também nestes territórios, o confronto pacífico e a harmonia prevaleçam sobre as disputas. Que o mundo aprenda a construir a paz, também limitando a corrida armamentista e convertendo os enormes gastos bélicos em apoios concretos às populações”.
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Para Francisco, as igrejas não devem se deixar usar pelo poder político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU