09 Setembro 2022
"Em resumo: a derrota do Apruebo ainda não é o fim de nada. Ele é só um lembrete de que, tão difícil quanto abrir processos sociais dessa dimensão, é sustentá-los ao longo do tempo –– e que para sustentá-los em sua radicalidade nem sempre basta apenas 'ser radical'", escreve Rodrigo Nunes, professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio, como organizador e educador popular, participou de iniciativas como o Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners (Reino Unido), em artigo publicado por Outras Palavras, 05-09-2022.
É um erro pensar que a onda conservadora tornou-se irresistível. Fracasso no referendo deveu-se a erros específicos, como a crença precoce na ruptura e o culto vazio à radicalidade. Nem tudo está acabado: reforma da Constituição prosseguirá.
O derrotismo instintivo de muita gente fatalmente interpretará o fracasso do Apruebo no referendo chileno, realizado neste domingo (4/9), como sinal de que a onda progressista refluiu, que ela tirou a direita do armário, de que foi um erro tentar ir contra um suposto conservadorismo natural da população. Calma.
Por tudo que tenho podido acompanhar, a derrota combina uma série de fatores: a frustração com o governo, que apostou tudo no Apruebo; a desinformação violenta em cima de alguns pontos que foram pouco discutidos com a população; dúvidas legítimas em relação a outros pontos; e, muito importante, o fato de que as principais forças políticas do país já sinalizaram com a possibilidade de outros caminhos para a solução do impasse constitucional.
O jogo não se encerra com o referendo: o Rechazo pode levar tanto a um recomeço do processo constituinte (posição de Boric) quanto a uma reforma ampla da Constituição atual –– a maioria necessária para tanto tendo sido rebaixada pelo Congresso há pouco, justamente para abrir um caminho caso o resultado fosse esse.
Ou seja: parece mais razoável considerar que essa foi uma rejeição desse texto constitucional do que uma rejeição da própria ideia de reforma constitucional, ou de uma constituição mais progressista, ou da esquerda em si.
Mas há outro elemento a considerar: uma rejeição do próprio processo constituinte tal como ele se deu. Este elemento parece ilustrar bem a diferença entre aquilo que chamo de sincronização afetiva e o convencimento político propriamente dito –– e o perigo de confundir os dois.
A Constituinte se instalou na esteira do “estallido social” de 2019 e uma votação em quase 80% optaram por reformar a Constituição. Certamente houve um momento em que o sentimento da necessidade de uma transformação progressista era dominante na sociedade chilena.
O problema é quando se começa a confundir “as pessoas estão sentindo o mesmo que nós” com “as pessoas estão de acordo conosco”. Os dois não são sinônimos: a sincronização afetiva é uma oportunidade para o convencimento político, mas este último precisa ser construído aos poucos.
Pelo que escuto, a Constituinte cometeu esse erro, seja performando uma ruptura que ainda não estava bem consolidada, seja focando demais em valores abstratos e esquecendo de falar dos avanços concretos imediatos (como Célio Turino aponta), seja deixando de incluir a população no processo de maneira contínua (como argumenta Camila Vergara), o que contribui para abrir uma distância entre constituintes e povo que acabaria ocupada, entre outras coisas, pelas campanhas de desinformação.
Em resumo: a derrota do Apruebo ainda não é o fim de nada. Ele é só um lembrete de que, tão difícil quanto abrir processos sociais dessa dimensão, é sustentá-los ao longo do tempo –– e que para sustentá-los em sua radicalidade nem sempre basta apenas “ser radical”.
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Chile: deixem o fatalismo para depois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU