26 Agosto 2022
"Qual seria, a curto e longo prazo, a parte de educação masculina absolutamente necessária para evitar a continuidade das violências de gênero? Como o masculino em nós poderia ser educado para contrabalançar as dores femininas? Que investimento político no masculino seria necessário para evitar a embriaguez do poder, do álcool, das drogas e a irresponsabilidade parental? Que propostas educacionais nacionais e locais se fazem necessárias para sairmos do 'azul' e do 'rosa', expressões marcadas por lugares pré-determinados por uma cultura patriarcal naturalizada?", escreve Ivone Gebara, filósofa, teóloga e religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, que lecionou por 17 anos no Instituto Teológico do Recife (Iter).
O contexto das eleições no Brasil nos convida a refletir sobre alguns aspectos dos discursos políticos em favor das mulheres. Os discursos que ouvimos de muitas bocas de candidatos/as de diferentes partidos podem parecer louváveis e até um avanço cultural e social que merece ser acolhido e refletido. Sem dúvida se pode afirmar que formalmente há um reconhecimento dos muitos processos de violência contra as mulheres e das imensas dificuldades que vivem quando arcam com a responsabilidade de criar sozinhas os filhos e filhas. Há igualmente respostas imediatas de reconhecimento da cotidiana situação precária e algumas leis protetivas que amparam mulheres frente a diferentes agressões. Não vou lembrá-las porque são amplamente conhecidas e divulgadas embora muitas mulheres por esse Brasil afora as desconheçam.
Entretanto, chama a atenção que as soluções diante desse triste quadro social tocam sempre as mesmas notas de favorecimento das mulheres através de Bolsas familiares, de ajudas, vales de diferentes tipos que vão do gás ao leite assim como outras benesses desse tipo. Essas iniciativas sublinham o fato de que a responsabilidade da manutenção familiar depende quase que exclusivamente das mulheres e sobretudo das mães. O pai provedor ou colaborador está ausente. O que se diz dele? Onde está ele?
A política vigente e a proposta de muitos candidatos/as é sempre de ajudar as mulheres. Com isso, concentram-se os problemas sociais da pobreza, da dependência, da necessidade de proteção, da responsabilidade familiar nas mulheres sem que se pergunte nada sobre o outro lado da moeda. Repete-se talvez sem consciência o mesmo modelo social. Que políticas sugerem para os homens? Que novas iniciativas educacionais? Que novas compreensões das relações humanas são apontadas?
Embora a necessidade imediata seja inegável e as ajudas necessárias à sobrevivência da população mais empobrecida é espantoso observar que poucas iniciativas tocam os alicerces culturais e sociais em grande parte responsáveis pela manutenção da situação vivida pelas mulheres. Não se situa essa realidade numa compreensão mais ampla dos seres humanos e na construção de relações culturais e sociais mais igualitárias. Não se sugere a necessidade de uma compreensão mais profunda de nós mesmos no presente e no precário instante de nossas vidas. Uma interpretação e reflexão baseada na suspeita da continuidade do mesmo modelo patriarcal se torna absolutamente necessária. Não se faz nenhuma análise política das estruturas sociais da domesticidade do trabalho das mulheres que de certa forma determinam sua exploração econômica, social e cultural.
É nessa perspectiva que me refiro a ausência de investimentos educacionais e culturais especificamente dirigidos aos homens, em geral os mais próximos produtores de certos tipos de violência contra as mulheres. Não ouvimos nas propagandas políticas a necessária educação do exército, das polícias, dos políticos, dos operários, dos empresários, inclusive do empresariado religioso para uma compreensão diferente da relação entre os seres humanos, notadamente entre mulheres e homens nas suas diferentes orientações. Não ouvimos quase nada sobre o direcionamento das indústrias nacionais e internacionais de guerra, da produção de armas, das soluções de problemas por eliminação e aprisionamento. Eliminamos os 'sujeitos' que nos parecem nocivos sem nos preocupar de preparar a vida social para que se diminuam as relações nocivas. Calamos a boca das/dos que têm fome com sacolas de alimento. O investimento educativo maior seria de resultado político para o futuro, porém deveria ser começado no presente.
Chama a atenção o fato de que as soluções propostas são as que vão garantir a continuidade do mesmo sistema de exploração, apenas amainado ou minimizado por algumas ajudas públicas. Vão igualmente manter o relacionamento abusivo dos homens em relação às mulheres. Encobre-se o problema nacional e internacional da permanência de uma visão dualista dos seres humanos em que alguns são considerados bons e outros maus, alguns superiores e outros inferiores. Dependendo dos interesses se faz alianças entre uns e outros. Deus e o Diabo se disputam na terra do sol!
Não se perguntam onde moram Deus e o Diabo? Onde seria a sede de seus respectivos Impérios? Não se pergunta sobre seu endereço e não se organizam formas para busca-los, para penetrar em seus recintos e conhecê-los melhor. Conhecê-los para melhor entender seus Impérios específicos que de fato se assemelham, embora possam parecer diferentes e radicalmente opostos. Deus e o Diabo, o Bem e o Mal, a justiça e a injustiça, o amor e o ódio nos habitam de forma misturada e é preciso educar-nos para reconhecer e conhecer melhor sua morada em nós. Nos processos políticos, sobretudo eleitorais, os candidatos sempre se julgam 'deuses' ou apenas melhores que os outros e acusam os outros de filhos do diabo. Os impropérios de uns contra outros não levam a nada.
Entretanto precisamos avançar na compreensão de nós mesmos. Mesmo quando se pode de fato constatar as ações maléficas denunciadas pelos acusadores estes mesmos não são isentos de limitações e não são sempre proprietários de real probidade política. O jogo político é cheio de leviandades e mentiras, de aparências e ocultamentos.
A contradição nos habita. Temos medo de encontrar-nos a nós mesmos/as. Tememos o Deus e o Diabo que nos habitam e que são também nossa carne. Habituamo-nos a considera-los entidades superiores a nós ou apenas fora de nós. Não queremos aceitar nossa real responsabilidade na manutenção de um sistema de exploração da maioria por uma minoria de privilegiados. Privilegiados e desprivilegiados têm também sua dose de responsabilidade!
Por isso, é mais fácil oferecer cursos de corte e costura para mulheres pobres sabendo que poucas conseguirão espaços no mercado produtivo em larga escala liderado por grandes marcas e grandes empresas comerciais. É mais fácil propiciar cursos de 'cozinha sadia' mesmo sabendo que é mais barato comprar um pacote de sopa em pó 'nada sadia' pois os ingredientes necessários para preparar a sopa em casa tornam-na mais cara. É mais fácil empregar mulheres como varredoras de rua, como limpadoras de creches públicas e dar-lhes salários infames fazendo a sociedade acreditar nas grandes possibilidades de trabalho oferecidas às mulheres pelos governos estaduais e municipais. É mais fácil proclamar que nas escolas públicas infantis há boas refeições diárias para as crianças e não deixar aparecer o assustador desperdício de alimentos. É mais fácil dar crédito financeiro às mulheres do que educar os homens à responsabilidade social. As contradições são muitas e parecem crescer em certos momentos de nossa história.
Pensarão as leitoras/es que tenho talvez uma solução mágica e que em breve algum político poderá até encampá-la. Não as tenho. Ouso dizer que tenho sentimentos e apenas algumas ideias repetitivas, pouco originais pois muitas outras pessoas já as afirmaram antes e de diferentes maneiras. Eu as repito de novo e do meu jeito, pois me espanta a mediocridade política do momento atual e a falta de coerência que parece estar difusa nas estatísticas e nas soluções propostas. Me espanta a inércia de muitos grupos e a falta de análises críticas mais ajustadas à nossa realidade.
Por isso pergunto: qual seria, a curto e longo prazo, a parte de educação masculina absolutamente necessária para evitar a continuidade das violências de gênero? Como o masculino em nós poderia ser educado para contrabalançar as dores femininas? Que investimento político no masculino seria necessário para evitar a embriaguez do poder, do álcool, das drogas e a irresponsabilidade parental? Que propostas educacionais nacionais e locais se fazem necessárias para sairmos do 'azul' e do 'rosa', expressões marcadas por lugares pré-determinados por uma cultura patriarcal naturalizada?
Parece-me que todas as instituições sociais e pessoas individuais estão sendo convocadas para rever suas posturas, suas crenças, o uso violento e excludente de seus deuses e de seus livros ditos sagrados. Não são estes livros que nos fornecerão as soluções políticas para responder às nossas necessidades atuais. Não são as invocações barulhentas que transformarão nossos corações de pedra e transformarão as pedras em pães.
Nessa linha, ouso ainda dizer que não se trata de apenas numericamente chegar a um equilíbrio representativo de gêneros nos poderes da república. Não se trata de estar presente numa Câmara de deputados ou até em um Banco estatal e continuar a ser assediada, desrespeitada e usada como moeda de troca para manter seu trabalho ou algum benefício. A paridade de representação é algo importante, mas não é tudo.
Os lugares de dominação masculina ou de dominação de uma cultura misógina e violenta precisam ser transformados a curto e longo prazo através de processos educacionais imediatos e mediatos. Esses processos não se fazem apenas através de punições, prisões que dão publicidade aos juristas e analistas. Embora haja que estancar imediatamente o sangue de uma ferida, há sobretudo que introduzir processos educativos mais amplos para prevenir a nível pessoal e social a agressão que usamos em relação ao outro ou a outra, consideradas nossa propriedade.
A crítica aos excessos da propriedade privada a nível social deveria estender-se às pretensões de propriedade dos corpos de uns e outras em todas as instâncias organizativas da vida social. Essa é a velha questão que nos habita! Julgamo-nos superiores ou inferiores uns aos outros em todas as instâncias. Naturalizamos esse julgamento, isto é, o tornamos natural, parte integrante de nossa própria natureza humana. Habituamo-nos a ele e o promovemos muitas vezes sem que percebamos a necessidade de muda-lo em vista de uma vida melhor.
O velho adágio socrático nos vem à memória 'Conhece-te a ti mesmo'. Sem dúvida este conhecimento não parece estar incluído em um programa político eleitoral. Entretanto, é um programa educacional de vida ao qual todas e todos estamos convidadas a aderir. Parece simples, mas é o mais difícil de todos os programas e, justamente por sua dificuldade e profundidade é capaz de transformar corações, introduzir ações comuns e lentamente construir novas instituições sociais capazes de respeitar as muitas vidas presentes na VIDA. Quem estaria disposta/o a arriscar-se nesse programa?
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O amor da política patriarcal pelas mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU