18 Agosto 2022
O ex-presidente Lula está sofrendo uma campanha infame promovida pelos “pastores do dinheiro”, escreve Tarso Genro, ex-governador do estado do Rio Grande do Sul, ex-prefeito de Porto Alegre, ex-ministro da Justiça, ministro da Educação e ex-ministro das Relações Institucionais do Brasil, em artigo publicado por Sul21, 17-08-2022.
Segundo ele, "ao acabar com a laicização do Estado o discurso fundamentalista, se tornado discurso do Estado, acaba com a 'liberdade de arbítrio no Estado de direito, que só pode existir dentro de limites determinados pelo fato de que cada um pode pretender liberdade igual', ou seja, a religião – de fato única – que vem do poder totalitário religioso, suprime a legitimidade de outro discurso religioso".
"Estas eleições podem se tornar uma guerra, - afirma Tarso Genro - não porque a política dividiu radicalmente as pessoas de forma espontânea ou porque as religiões nos levaram a esta situação, mas sim porque o fundamentalismo das religiões do dinheiro e o discurso fundamentalista neoliberal encontraram um caminho comum, na situação histórica concreta: a vitória das opressões de classe, que vem por dentro da dominação do rentismo ultraliberal e das guerras mundiais “parciais”, já são radicalmente avessos à razão, à liberdade de espírito e às liberdades políticas da democracia liberal representativa".
Estamos no limiar da recuperação dos valores da democracia e da República ou no limiar do acolhimento eleitoral da sua traição. Aposto, otimista, na primeira hipótese, não sem lembrar – talvez suscitado por uma leitura mal lembrada de Jorge Luis Borges – que o traidor é homem de lealdades sucessivas e opostas e um fascista, um fanático, um sectário, é um homem que só é leal a si mesmo, ou seja, (é leal) a um ódio visceral ou a uma repulsa radical de tudo que é humano. Fascistas e traidores da Carta de 1988 estão do mesmo lado, embora nem todos sejam conscientes do campo onde revezam os seus ódios e as suas mentiras.
Tempos limites são tempos de relembrar nossas vidas, erros, aprendizados e sobretudo de recordar o quão humanos permanecemos num tempo em que um Presidente diz que quer matar, mas é absolvido – mas além dos seus cúmplices – pela tolerância dos que formam a opinião, como se a omissão não fosse cumplicidade e a tolerância pudesse se vestir de algo que não fosse covardia.
No início da década de 1950 – mais precisamente em agosto de 1952 – o jornalista e escritor Gondin da Fonseca (1899-1977), repórter-cronista quando queria e genial panfletário político nos momentos adequados, concedia uma entrevista a sua querida sobrinha Regina Helena, na sua morada carioca na Tijuca.
Dizendo que iria abandonar jornalismo, Gondin da Fonseca – também intelectual sofisticado e defensor da regulamentação profissional do jornalismo – se dizia “cansado”: queria “sombra e água fresca”. Para ele, isso significava dedicar o seu tempo a escrever um livro sobre o escritor português Camilo Castelo Branco, que admirava com a mesma intensidade que amava Eça de Queiroz. Lembro este nome emblemático da imprensa e da intelectualidade daquela época conturbada da formação do Brasil moderno, porque no início desta campanha eleitoral seu nome me veio à mente através do título de um dos primeiros, senão o primeiro livro “político” que li do começo ao fim.
Em 1961, na santa ignorância dos meus 14 anos de idade li Senhor Deus dos Desgraçados! e aprendi lições que me marcaram até hoje, bem distante – graças ao Sr. Deus dos desgraçados – da cultura “fast-food” do modo neoliberal do viver e amar, marcada pela ascensão do fascismo em todo o mundo, cuja indiferença com o outro naturaliza tanto os bolsonaros da vida bem como o assassinato de adversários políticos.
O título arrebatador me surgiu sem aviso enquanto eu lia uma matéria nas redes sobre um destes pastores do dinheiro, que transitam das delegacias de polícia para seus templos nem tão discretos, onde se apresentam aos pobres da sociedade de classes com a sua conveniente visão de um Deus que é seu apoiador político celestial, sem jamais apresentar as fontes de suas rendas terrenas. A confusão entre política e religião nunca foi tão grande no país e ela ajuda a radicalização do processo de disputa política, pois esta subsunção da política à religião (ou vice-versa) anula a discurso da razão democrática, de parte-à-parte, e permite a substituição do argumento pela fé, o que está apenas a um passo da violência política sem fim.
É possível respeitar todas as religiões e garantir a plenitude dos seus direitos à pregação religiosa, sem se deixar intimidar pelo ódio que exala das falsas pregações, destinadas a destruir a laicidade do Estado e assim reservar o direito à palavra, exclusivamente aos que concordam com as suas convicções e ensinamentos fundamentalistas, com o discurso oportunista que visa apenas os fins materiais desta vida, para os pastores em busca de capital.
Das religiões podem se originar ensinamentos que subjugam as pessoas, ao invés de orientá-las na fé e também ensinamentos que buscam extorquir uma parte das pequenas economias das pessoas do povo, ao invés de lhes aproximarem das mensagens de generosidade e solidariedade contidas em todas as religiões. Por existirem estas duas possibilidades é que o Estado moderno é laico e proíbe que seu aparato de poder e os seus recursos sejam ocupados pelos governos, no Estado de direito, para premiar com atenção e direitos os “crentes” do seu grupo e excluir os demais, que não aceitam seus discursos de ódio e discriminação.
O ex-presidente Lula está sofrendo, neste momento em que escrevo este texto, uma campanha infame certamente promovida por estes pastores do dinheiro, difamadores e escroques largamente presentes na crônica policial. Este início de campanha me lembrou igualmente o livro de Gondim da Fonseca, Senhor Deus dos desgraçados, para presumir um outro tipo de criador: aquele dos meliantes políticos vindo dos antros do fundamentalismo, cuja doutrina reporta-se a um “criador” que autoriza a extorsão pela fé e também estimula o combate político sem ideias para facilitar o seu enriquecimento sem causa.
Ao acabar com a laicização do Estado o discurso fundamentalsta, se tornado discurso do Estado, acaba com a “liberdade de arbítrio no Estado de direito, que só pode existir dentro de limites determinados pelo fato de que cada um pode pretender liberdade igual”, ou seja, a religião – de fato única – que vem do poder totalitário religioso, suprime a legitimidade de outro discurso religioso.
Assim, ela segrega para a segunda classe da cidadania as visões da religião que sejam tolerantes com a diversidade do ser humano, bem como com as diferenças culturais que formam cada comunidade do gênero humano. Não é gratuito que a visão do “caminho único” na economia seja apropriado como “coisa sua”, pela maioria da religiões que pregam os dogmas do fundamentalismo e da intolerância religiosa, que se converte rapidamente em intolerância política na vida comum. Não é estranho também que os partidos de extrema direita tendentes ao fascismo sejam pródigos em se apresentar em nome de Deus, da Pátria e da Família, para escorar a sua identidade totalitária.
Estas eleições podem se tornar uma guerra, não porque a política dividiu radicalmente as pessoas de forma espontânea ou porque as religiões nos levaram a esta situação, mas sim porque o fundamentalismo das religiões do dinheiro e o discurso fundamentalista neoliberal encontraram um caminho comum, na situação histórica concreta: a vitória das opressões de classe, que vem por dentro da dominação do rentismo ultraliberal e das guerras mundiais “parciais”, já são radicalmente avessos à razão, à liberdade de espírito e às liberdades políticas da democracia liberal representativa.
Não há mais dissimulação possível – dentro da democracia política – por isso naturalizaram o fascismo e passaram a cultuar a morte como consenso e a distorção religiosa como arma da hegemonia. Isso nos chama à vida e nos dará forças para vencer.
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O Deus dos desgraçados. Artigo de Tarso Genro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU