16 Agosto 2022
Aqui vamos nós de novo. A tentativa de assassinato de Salman Rushdie amplia a lista de atentados que ensanguentaram os noticiários nas últimas décadas. O nervo exposto é sempre o mesmo: a crítica ao Islã. Um tema de enorme significado simbólico, capaz como poucos de acender os ânimos.
O comentário é de Martino Diez, islamólogo, publicado por Domani, 14-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na Europa, vêm à mente as caricaturas do Charlie Hebdo, o caso de Theo van Gogh e, mais recentemente, do professor francês Samuel Paty, mas na realidade a questão é mundial. E Os Versos Satânicos de Rushdie podem ostentar uma primazia: a do primeiro caso de blasfêmia globalizada. Até então, o que era publicado em Londres, Paris ou Roma passava despercebido no mundo muçulmano e vice-versa.
Em 1989, com a fatwa de Khomeini, de repente descobrimos que a tecnologia não nos permitia mais nos ignorarmos. E com o crescimento da conectividade, cresceu exponencialmente a possibilidade de acidentes, repropondo o tema entre liberdade de criação artística e respeito ao sentimento religioso. Para eliminar qualquer ambiguidade, o livro de Rushdie é ofensivo ao credo muçulmano. Os versículos satânicos do título referem-se a um relato preservado pelo influente exegeta medieval al Tabari, segundo o qual Maomé teria recebido uma falsa revelação de Satanás (dois versículos da sura 53), antes que o arcanjo Gabriel interviesse para corrigir o erro.
Em Rushdie, no entanto, esse episódio é usado para afirmar, por trás do véu muito tênue de uma visão onírica, a falsidade da pretensão profética de Maomé, acompanhada de ofensas contra suas esposas e o Alcorão: em suma, há todos os elementos para horrorizar os muçulmanos. Sabemos bem qual foi a resposta de Khomeini - incidentalmente, mas não muito, satirizado no romance chamado The Imam – agora tragicamente implementada por um jovem libanês simpatizante do Hezbollah, apenas para nos lembrar dos nexos orgânicos que unem o libanês Partido de Deus ao seu patrocinador iraniano. Porém, seria demasiado fácil descartar o episódio como uma ideia de Khomeini.
Na realidade, a ideia está bem enraizada na jurisprudência islâmica medieval: a espada desembainhada contra qualquer um que insulte o Profeta é o título, muito explícito, de um famoso tratado do jurista medieval Ibn Taymiyya (m. 1328), muito popular na web. Hoje, é claro, os líderes muçulmanos oficiais evitam mencionar os propósitos incendiários de Ibn Taymiyya. Não são mais os tempos de Farag Foda, outro intelectual egípcio esfaqueado e morto em 1992, quando o influente xeique Muhammad al-Ghazali foi testemunhar no processo contra os dois agressores, defendendo suas ações.
Por outro lado, porém, também são poucos os pensadores ou grupos muçulmanos que, como o site muçulmano francês SaphirNews, se posicionam explicitamente contra o crime de blasfêmia. Pelo menos a julgar pelas reações que até agora vazaram, a maioria das autoridades religiosas preferiu o caminho do silêncio. Hipocrisia? Creio que não, nem sempre.
A globalização também está em ação no mundo muçulmano e o problema da relação com o não crente (ou diversamente crente) surge com muito mais força do que no passado, quando as sociedades eram homogêneas. No entanto, essa mudança não afetou até agora a jurisprudência. Se isso acontecer, serão os muçulmanos a decidir e não cabe aos não-muçulmanos indicar como. Nossa tarefa é mais indicar a existência do problema.
Em outras palavras, o que fazemos com a espada desembainhada? A essa pergunta acrescento uma segunda, desta vez dirigida à Europa: posto que o recurso à violência nunca é aceitável, até onde pode ir a crítica legítima e onde começa o insulto gratuito? O dominicano Adrien Candiard nos oferece um começo de resposta em um pequeno livro sobre a tolerância. A crítica, mesmo dura, apela à razão do interlocutor, reconhecido como capaz de verdade; o insulto se alicerça nos sentimentos e desqualifica o adversário. A via para pensar a liberdade de expressão em um mundo globalizado passa por aqui.
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A blasfêmia global e o dilema da tolerância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU