A realidade humana nunca é simples. Os relatos de manipulação e de violência do Livro dos Juízes são compostos de forma a dar a perceber a complexidade dos modos de falar e de se comportar. O relato convida a avaliar de forma positiva ou negativa os comportamentos dos personagens de acordo com o fim buscado por quem os adota e pelo seu modo de realizá-los.
O comentário é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 31-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O exegeta belga André Wénin, professor de Antigo Testamento e de Hebraico Bíblico na Universidade de Louvain-la-Neuve e professor convidado da Gregoriana, oferece um interessante estudo sobre um livro bíblico negligenciado pela liturgia católica, pouco conhecido e pouco amado pelos próprios fiéis. De fato, nele se encontra um acúmulo de relatos de violências e estupros, homicídios e saques, massacres e truques baseados em ficções e mentiras.
Sem comentar o perfil histórico dos personagens, que abrangeriam o período que vai da entrada na terra prometida até a escolha do primeiro rei, Saul, Wénin analisa o texto do ponto de vista narratológico, investigando o movimento do relato, o suspense criado no leitor, o objetivo final que se pretende alcançar.
Os relatos dos Juízes fazem parte da história deuteronomista mais ampla. Emergindo em etapas sucessivas – pré-exílicas, exílicas e pós-exílicas –, pretendem explicar a razão profunda do estado em que Israel veio a se encontrar com o exílio. Wénin chama isso de “ficção historiográfica”.
O livro foi formado por adições posteriores. Durante o pós-exílio, foi acrescentada a história de Sansão e os últimos capítulos, trágicos, da divisão interna em Israel.
A tragédia se deveu à falta de fidelidade à aliança que ligava Israel a YHWH. Caindo na idolatria, Israel progressivamente se distanciou de YHWH e foi vítima dos objetivos de conquista dos povos vizinhos.
Mais do que “juízes”, os personagens lembrados no livro bíblico são “libertadores” provisórios do povo do predomínio dos inimigos, filisteus em primeiro lugar (mas também amonitas e moabitas).
Além das histórias de alguns “juízes menores”, são contadas as histórias de libertadores que se preocuparam com a situação do povo e lhe asseguraram uma paz provisória.
Quanto aos primeiros “juízes”, aparece no livro um esquema muito específico (cf. Jz 2,6-19), que depois desaparecerá progressivamente, sinal de que Israel se encaminha para uma trágica decadência sem remédio.
O esquema prevê as seguintes etapas: afastando-se da aliança, Israel cai na idolatria; YHWH então o abandona nas mãos do inimigo, que o ataca e o oprime por anos. Esmagado pela opressão, o povo clama ajuda a Deus. Este responde ao seu clamor, enviando um “juiz” que liberta Israel no decorrer de um combate vitorioso. Mas, depois da morte desse juiz, o povo volta a cair nas suas falhas. Então, o ciclo recomeça: infidelidade, opressão, clamor, envio do juiz e salvação.
Para os deportados ao exílio, prováveis destinatários da primeira edição do material literário do Livro dos Juízes, a mensagem tinha que parecer clara. No marco da aliança feita por Israel com YHWH, a infidelidade causa infelicidade e morte, enquanto o retorno a Deus traz salvação e vida, pois o Deus da aliança é fiel e misericordioso.
A idolatria provocou o desastre do exílio. É preciso desconfiar da poderosa atração implementada pelos ídolos do país para o qual Israel foi exilado e retornar a YHWH na conversão.
Os acréscimos feitos no pós-exílio (por exemplo, Jz 2,20-3,6) assumem os traços de uma advertência: ao frequentar perto demais os povos vizinhos, Israel poderia adotar as divindades deles. Seria, então, causa da própria desgraça, colocando em risco, assim, a sua própria sobrevivência.
O Livro dos Juízes se apresenta para Wénin como a história de uma progressiva decadência na vida religiosa de Israel, que cai na guerra civil.
No segundo capítulo do livro, Wénin faz um resumo do Livro dos Juízes e delineia a sua estrutura.
No prólogo (1,1-3,6), narra-se a conquista da terra de Canaã sob a liderança de Josué e, depois, introduz-se o restante do relato. Ao tempo das vitórias (Otoniel, Aod e Débora, 3,7-5,31) segue-se o início da decadência (Gedeão e Abimelec, 6,1-9,57). A situação degenera (Jefté, 10,6-12,15) e desponta um salvador que não salva, Sansão (13-16). O livro termina com o caos e as trevas (17-21), onde se anota a falta de um rei é notada e o fato de que cada um fazia o que parecia certo aos seus olhos.
O espaço concedido aos vários personagens vai de poucas linhas a capítulos inteiros. Wénin investiga o sentido global que pode ser deduzido sobre isso e que é exposto nos últimos capítulos. A Bíblia não é um livro que apresenta verdades teológicas sempre cristalinas e positivas. É o espelho da nossa humanidade, e mostrar os defeitos e as tragédias a que chega a natureza humana nos ensina a vê-los com profundidade de espírito a fim de saber controlar e guiar as forças obscuras que podem levar o ser humano ao desastre.
Juízes expõe a teologia clássica da retribuição. Se Israel faz o bem, conhece a paz e a felicidade; se, ao invés disso, foge do seu compromisso, cai na desventura.
Um aspecto menos evidente, porém, é o da ênfase na paciência de um Deus misericordioso, que sempre espera que o seu povo aprenda com os seus erros e com a descoberta da fidelidade misericordiosa do seu Senhor.
O livro constata, no entanto, que o povo tem o terrível poder de paralisar o seu aliado divino, substituindo a Lei como norma de comportamento por aquilo que parece certo aos seus próprios olhos.
Os “juízes” são “heróis” improváveis e seguem uma curva que se dissolve em uma “perversão” progressiva.
O general Barac está em uma busca vã da glória (que será obtida por Débora e por Jael, duas mulheres…).
Gedeão passa do medo e da reticência inicial ao massacre dos madianitas e de duas cidades israelitas que se recusaram a ajudá-lo. Gedeão se afunda em uma violência desnecessária.
Seu filho Abimelec seguirá os seus passos, para retomar um poder que seu pai havia rejeitado inicialmente.
Jefté, filho bastardo de uma prostituta e expulso da sua família, busca o poder a todo o custo. Autopropõe-se como líder e provoca o rei de Amon à guerra, traz YHWH à baila como aquele que deu um país ao seu povo e o envolve na guerra. Seu desejo de poder é patológico, a ponto de prometer a YHWH sacrificar a primeira pessoa que sair da sua casa para encontrá-lo. Manipula os adversários e o próprio YHWH. Não vai parar nem mesmo diante da filha e dos dois meses de reflexão que podiam fazê-lo mudar de ideia. Ele certamente não pode ser elogiado pela fidelidade à sua promessa (embora alguns Padres da Igreja tenham feito isso).
Sansão é um salvador que não salva, mas persegue seus próprios interesses pessoais, praticando uma série de seduções, saques, traições, violências e vinganças.
Dalila corta o cabelo de Sansão, de Rubens, conforme o relato em Juízes 16:19.
Pintura de Peter Paul Rubens
Foto: Wikimedia Commons
No capítulo cinco, o estudioso observa que, no decorrer do livro, o povo parece cada vez mais dividido: Gedeão luta contra a poderosa tribo de Efraim e destrói duas cidades israelitas, Sucot e Fanuel, que não lhe haviam fornecido alimentos.
Abimelec massacra seus meio-irmãos, luta contra os anciãos de Siquém e arrasa a cidade. O livro observa que é Deus quem semeia o joio entre o rei e os homens que o colocaram no trono.
As críticas dirigidas ao juiz de algumas partes de Israel parecem ser uma chave útil para dar a entender que YHWH adverte o juiz quando ele está se tornando uma ameaça ao seu povo porque começa a abusar do seu poder.
Às margens do Jordão, Jefté degola 42.000 homens da tribo de Efraim identificados pelo seu sotaque regional.
Os capítulos 19-21 narram a guerra civil que se instaura quando cada um faz o que lhe parece certo.
A tribo de Benjamim é quase completamente eliminada, ao ser acusada pelo estupro e pelo assassinato da concubina de um levita que havia pernoitado em Gabaá. Para fornecer mulheres para os 600 sobreviventes, as tribos se aliam para atacar Jabes de Galaad que não tinha participado da guerra (levando 400 mulheres) e permitindo o sequestro de outras mulheres nos campos de Silo. De fato, havia sido formulado um juramento segundo o qual nenhuma das tribos forneceria uma esposa aos benjaminitas. A manutenção da promessa tem custos humanos muito altos...
Também nesse caso envolve-se YHWH. A quase eliminação de uma tribo mostra como a infidelidade a YHWH envolve também as relações entre os israelitas, a convivência fraterna proposta pelo Deuteronômio.
Wénin dedica um capítulo do livro às mulheres. Da empreendedora Acsa passamos a Débora, que favorece a vitória sobre Sísara, e depois a Jael, que mata materialmente o general inimigo.
Débora, profetiza e juíza, numa estátua em Aix-en-Provence, na França
Foto: Georges Seguin | Wikimedia Commons
A essas protagonistas da salvação opõem-se as figuras que se seguem, sobretudo no fim do livro. Elas são vítimas da loucura dos homens (por exemplo, a concubina do levita, violentada até a morte e depois desmembrada pelo marido e enviada em pedaços para as várias tribos).
Aparecem a concubina do levita, as mulheres de Jabes e as meninas de Silo. No centro do livro, emergem figuras de mulheres que servem de transição entre as protagonistas e as vítimas. Destacam-se particularmente a filha de Jefté, a mãe de Sansão e a mãe de Micas.
A filha de Jefté espera o arrependimento do pai, afastando-o do ídolo do poder.
A mãe de Sansão aparece em uma cena de anunciação em que o marido aparece em um comportamento um pouco grotesco, mas é trazido de volta à razão pela esposa.
A mãe de Micas (cf. 17,1-4) recupera o dinheiro roubado pelo filho e lhe devolve um quinto para fabricar um ídolo. A mãe empurra o filho para a idolatria, o que logo provocará a sua desgraça. Outro sinal de decadência inexorável.
As mulheres estrangeiras aparecem sobretudo na história de Sansão, um verdadeiro “mulherengo”. A mais famosa é Dalila, que o levará à morte. Haverá duas mulheres que “no tempo dos juízes” (Rt 1,1) reabrirão o acesso de Israel a YHWH: Rute, a moabita, verdadeiro Abraão no feminino (cf. Rt 1,16-17), e Ana, uma israelita estéril, imagem de um povo destinado à morte, que restitui a YHWH a sua capacidade de dar vida, consagrando-lhe o filho que receberá como dom dele. Trata-se de Samuel, o último juiz e o primeiro dos profetas.
Em última análise, as mulheres de Juízes também testemunham a deriva progressiva de Israel. Uma figura emblemática é a filha de Jefté: “Tentando proteger a vida, a sua iniciativa se retorce contra ela quando o pai a sacrifica sobre o altar de um poder tirânico” (p. 71).
O Livro dos Juízes está repleto de episódios de violência, assédios, execuções, guerras, estupros, sequestros, sacrifícios humanos etc. Os episódios são muitas vezes preparados por atitudes e palavras de astúcia, engano e manipulação. Apresentados positivamente nos primeiros capítulos do livro, por visarem à salvação de Israel, eles são aos poucos desvalorizados na continuação do texto. Apresentados sob uma luz cada vez mais negativa, reforçam a linha geral do Livro dos Juízes, que narra a decadência de Israel, para ser possível captar as suas várias nuances.
Existem truques para facilitar um ato violento. São aqueles preparados por Aod para matar o rei inimigo de Moab, contados até com um fio de ironia e de desaprovação em relação à comitiva do rei que não é protegido adequadamente.
O estratagema de Jael leva à morte do general inimigo Sísara e, depois, é elogiado por trazer salvação ao povo de Israel (por meio de uma mulher!).
Jael assassina Sísera, conforme o relato em Juízes 5:24-26.
Pintura de Jacopo Vignali
Foto: Sotheby's | Wikimedia Commons
Os enganos perpetrados por Sansão não são elogiados, porque não têm como alvo um líder inimigo, mas visam a massacres coletivos, que não mudam nada na opressão do povo.
Depois, há enganos bélicos para surpreender o inimigo. São colocados em prática por Gedeão, que vence o inimigo com apenas 300 homens divididos em três fileiras (e, na realidade, os inimigos se autodestroem sozinhos).
Abimelec recorre à astúcia duas vezes para derrotar os seus ex-aliados de Siquém, dividindo as suas tropas e cercando o inimigo pelas costas. Mesma tática usada pelas tribos coligadas contra Benjamin e a cidade de Gabaá (Jz 20,29-36).
A manipulação que leva à violência é aquela perpetrada por Abimelec, que massacra seus meio-irmãos para eliminar todo rival em potencial, e por Jefté, que provoca o rei amonita à guerra, envolvendo até mesmo YHWH e o dom das terras a Israel depois da saída do Egito.
Naquela época, Amon não havia tentado tomar as terras de Israel, mas Jefté manipula a realidade. Por quatro vezes Jefté, o galaadita, associa Deus ao direito de propriedade de Israel sobre o território reivindicado pelo amonita. Desse modo, ele transforma a guerra que está prestes a explodir em um assunto pessoal de YHWH, obrigando-o, por assim dizer, a intervir para defender os direitos de Israel.
Apelando ao juízo divino, Jefté também exorta YHWH a tomar partido em uma guerra que é importante para Israel, é claro, mas acima de tudo para Jefté e para o seu sonho de poder. De fato, quando o rei amonita se recusa a escutar, o espírito de YHWH desce sobre Jefté (11,29).
Os exemplos de manipulação retórica destinada a favorecer a violência se encontram no início e no fim da curva negativa da evolução de Israel rumo à anarquia (Jz 9 e 20). “Quando a palavra não é mais posta a serviço de uma paz possível, mas leva ao homicídio e à guerra, a desumanização está perigosamente próxima!” (pág. 81).
O Livro dos Juízes narra histórias que pressupõem códigos de leitura. Essas medidas brincam com a afetividade do leitor – temores, desejos, expectativas, espantos etc. –, a fim de levá-lo a apreciar os “fatos” e os seus protagonistas de uma forma ou de outra. Um relato sempre dá uma certa visão daquilo que narra e, no caso dos relatos bíblicos, uma visão particular de Deus.
Wénin ilustra os efeitos que se pretendem produzir nos episódios centrados em fatos violentos. O Livro dos Juízes revela-se – segundo o estudioso – uma obra-prima literária, em que a arte narrativa está a serviço de uma ética e de uma teologia.
No episódio do juiz Aod que mata o rei amonita com um estratagema enquanto ele é retirado para fazer as suas funções fisiológicas, enganando assim a corte que não o protege e descobre tardiamente o ocorrido, visa-se a conquistar o leitor com a ironia.
O relato apresenta três “e eis” que levam a aumentar o suspense. Os cortesãos tergiversam entre si, permitindo que Aod fuja depois de ter enfiado a sua adaga com a mão esquerda até o cabo na barriga gorda do rei. Isso permite que ele não se suje de sangue e fezes, e seja descoberto...
O leitor cristão pode ficar perplexo, mas Wénin lembra que, se Deus não tem nada a ver com a violência, ele pode ser o Deus dos homens? “E se o leitor não reconhecer com lucidez a sua cumplicidade com a violência, poderá manter o controle sobre ela?” (p. 85).
Em relação a seus concidadãos, Gedeão mostra o poder da palavra. O pai defende Gedeão que demoliu o altar do ídolo. Ele confia a sua autodefesa a Baal. O juiz chamado por YHWH é, assim, salvo, e o leitor se alegra com isso.
Ao término da sua vida, porém, Gedeão construirá um objeto ritual com o ouro e a prata tirados dos vencidos. Um gesto ambíguo que levará o povo à idolatria (8,24-27). Após a sua morte, será até o “Baal da aliança” que se tornará o deus deles (8,33-35).
O relato trágico de Jefté, por sua vez, visa a suscitar a reprovação e a reflexão. O horror do gesto final é narrado com sobriedade. O leitor, porém, compreende que Jefté sacrifica a filha não tanto a YHWH, mas à sua ambição sem limites.
As palavras da filha movem o leitor à compaixão e visam a induzir o pai a reconsiderar as suas intenções nos dois meses que ela passará chorando pela sua virgindade.
O foco do relato não descreve o sacrifício da filha, insistindo na atrocidade, no holocausto e na imolação, mas está totalmente centrado na perspectiva de quem o realiza. Jefté age friamente; ele não fez o gesto “por ela”, mas, por trágica ironia, faz o gesto para si mesmo. Para Jefté não existe uma filha, mas um animal a ser sacrificado.
O leitor fica escandalizado e horrorizado, e, mesmo após o massacre realizado por Jefté contra a tribo de Efraim que o contesta, terá material para refletir sobre as derivas que ameaçam qualquer pessoa que ambicione o poder.
Outros relatos pretendem despertar no leitor uma atitude de difamação de um personagem. Isso ocorre com Jefté e a sua relação com os efraimitas e com as escolhas feitas várias vezes por Sansão.
Gedeão havia apaziguado os ânimos dos efraimitas, mas Jefté os repreende duramente e faz disso um assunto pessoal, realizando um massacre de 42.000 pessoas e despertando o horror do leitor.
Sansão não corresponde à ação de YHWH em seu favor, mas assume atitudes burlescas, e uma série de repetições observa que a sua atitude é incorrigível, pois ele age apenas por interesse pessoal e não pela libertação de Israel. YHWH se afasta dele, e não há razão para pensar – afirma Wénin – que YHWH, no fim, responderá à sua última oração (16,28).
A estranha história de Micas (Jz 17-18) denuncia as derivas com ironia. Micas assume um levita de Belém para torná-lo o seu sacerdote pessoal, depois de ter consagrado ilegalmente um de seus filhos como tal.
O relato ironiza ferozmente a atitude de Micas, que pensa que YHWH lhe fará bem porque agora ele tem um sacerdote pessoal no seu santuário privado. No fim, ele construirá um ídolo com parte do dinheiro roubado da mãe e que ela lhe deu.
Alguns exploradores danitas são encorajados por Micas na sua viagem de exploração. Sobre a cidade considerada como fácil de conquistar, Micas afirma: “Deus a entrega nas suas mãos!”. Volta-se a misturar YHWH no assunto. A idolatria já se tornou comum e normal em Israel.
No fim, os danitas vão furtar os tesouros objeto de culto do santuário: efod, terafim e o ídolo. Micas persegue os ladrões em vão. Quem abandonou a aliança pela idolatria está agora coberto de zombaria aos olhos do leitor, que, no entanto, aprende que quem semeia idolatria colhe violência.
O relato também pode suscitar o escândalo. É o caso do levita e da sua concubina, literalmente dada como alimento aos habitantes de Gabaá, que a violentam até a morte durante toda a noite. Com cinismo, de manhã, o levita a despedaça e envia os miseráveis restos às tribos, que se levantarão contra a de Benjamim, chegando quase a aniquilá-la definitivamente.
Depois de um início lento que sugeria uma atitude positiva do levita em relação à mulher que fugiu da casa do pai para escapar do marido, ela se depara violentamente com a atitude horrível dos habitantes de Gabaá e do levita: uma série de atos ignóbeis e atrozes, desumanos, que instrumentalizam até o cadáver da mulher. Ela sempre havia sido relegada às margens. “O estupro e o assassinato são a consequência lógica de uma violência que se enraíza na indiferença e no desprezo dos homens e na exploração da mulher em função das suas necessidades ou dos seus desejos” (p. 93).
Diversos procedimentos, portanto, fazem com que o autor mostre os “fatos” de uma forma ou de outra, de modo a despertar emoções, surpresas, suspense e sentimentos diversos. Estes podem ser de aprovação ou de difamação dos vários sujeitos envolvidos.
O Livro dos Juízes demonstra ser – segundo Wénin – um magnífico exemplo da notável arte narrativa que caracteriza muitos relatos do Antigo Testamento.
O estudioso dedica algumas páginas finais do livro à recepção de Juízes no judaísmo antigo, no cristianismo antigo, na Idade Média e nos nossos dias.
Wénin repreende a Igreja por mostrar a Bíblia como um livro no qual Deus se revela essencialmente em Jesus Cristo, em que se encontram personagens edificantes a serem imitados, uma ética a ser praticada, revelações aptas a alimentar a fé.
Se não for falsa, essa visão é – para o estudioso – gravemente distorcida, pelo menos no que diz respeito ao Antigo Testamento. A Bíblia “é também o livro que revela qual é a nossa humanidade, à qual Deus se volta para salvá-la: uma humanidade capaz de nobreza, de generosidade e de grandeza de espírito, assim como das piores covardias, das violências mais atrozes, das obscenidades inomináveis. A Bíblia diz como é complexa a condição humana e mostra como é tênue a linha que separa a virtude da perversão. Ela denuncia as armadilhas das aparências, convida a pessoa a ser ela mesma ao invés de imitar, confunde para expor as certezas estéreis etc. Talvez seja para não ter que se confrontar com essa realidade – pergunta-se o autor – que as Igrejas ignoram amplamente o Antigo Testamento, em particular livros como o dos Juízes, em que se manifesta mais claramente esta outra faceta das Escrituras?” (p. 100).
O que incomoda parece ser o fato de que a Bíblia não pode ser compreendida na primeira leitura, exige um aprofundamento, que nos interroguemos diante do texto e que o estudemos.
Segundo Wénin, “a Bíblia nos força a ver que Deus fala nela somente se deixarmos de esperar que ela nos sirva verdades pré-digeridas e se renunciarmos a uma forma de preguiça espiritual, que consiste em esperar que as Escrituras confirmem absolutamente aquilo que pensamos, aquilo em que acreditamos” (ibid.).
O Livro dos Juízes também pode voltar a ser, como nos tempos dos Padres, um livro “nas fontes da vida da Igreja” e dos fiéis.
“Se este livro é uma escola de lucidez, em que se narra a realidade humana sem esconder nada dos seus defeitos e da sua violência – afirma o autor – não seria verdade, talvez, que ele também fala de um Deus ‘lento para a ira e cheio de amor misericordioso’ para com esta nossa humanidade?” (p. 100).
Na sua conclusão (pp. 105-106), que segue algumas chaves de compreensão da nossa cultura por meio do Livro dos Juízes (pintura, música, literatura e cinema) e antecede a bibliografia, Wénin observa que o leitor se encontra revendo a sua noção da Bíblia, encontra-se no coração de uma história “humana, demasiado humana”, a história de uma inexorável decadência de um povo que afunda pouco a pouco na autodestruição. As causas se devem ao esquecimento da aliança que une o povo a YHWH.
O povo vai rumo àquilo que o satisfaz e não ao fundamento da sua identidade. Ele se encontra preso nas aparências e se torna escravo dos seus desejos e dos seus medos. Os líderes escolhidos por Deus para libertar Israel, por sua vez, seguem a atração do lucro pessoal e da sede de poder, quando não da embriaguez de uma violência mais ou menos evidente.
Os relatos evidenciam como é possível se preparar para o fracasso e querem suscitar a lucidez e a responsabilidade do leitor em relação à sua própria história. A Bíblia revela quem é Deus, mas também o que é o ser humano e do que ele é capaz. O fiel também não está imune ao destino dos outros seres humanos, por ser capaz também do melhor e do pior, de se abandonar aos seus próprios demônios, enquanto acredita estar no caminho certo.
Mas Deus é misericordioso e paciente, respeita a liberdade das pessoas até o fracasso, mas sempre inventando novos modos para chegar ao caminho dos corações.
A realidade humana nunca é simples. Os relatos de manipulação, de violência são compostos de forma a dar a perceber a complexidade dos modos de falar e de se comportar. O relato convida a avaliar de forma positiva ou negativa os comportamentos dos personagens de acordo com o fim buscado por quem os adota e pelo seu modo de realizá-los.
Desse modo, o leitor é convidado a avaliar aquilo que lê e a refinar o seu senso moral e a sua consciência da complexidade humana. No entanto, é preciso “aprender a ler os textos bíblicos respeitando os seus códigos originais, em vez de querer encontrar neles aquilo que se gostaria” (p. 106).
O texto de Wénin é verdadeiramente fascinante. O seu método narratológico, como sempre, envolve o leitor em um caminho que permite saborear a beleza da arquitetura narrativa dos textos, para chegar a resultados que nunca são banais e previsíveis, mas que interrogam a profundidade do coração não só de Deus, mas também de cada ser humano, de todos os tempos.