30 Julho 2022
A história de Elena Lucrezia Cornaro Piscopia, hoje, para nós, também conserva em si a história da sua redescoberta, ou seja, a história de um fio memorial que não se perdeu no silêncio, como ocorreu com infinitas outras histórias de mulheres.
O comentário é de Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior “Francesco Gonzaga”, em Castiglione delle Stiviere, Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 27-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os raios do sol atravessam o vitral da Biblioteca do Vassar College em Poughkeepsie (Nova York, EUA), enchendo a sala de leitura de luz colorida. Na parte superior, ligeiramente arqueada, da grande janela estão representadas imagens femininas de claro significado alegórico: Gramática, Dialética, Música, Filosofia, Astronomia, Medicina, Geometria, Teologia.
Todo o resto da janela é ocupado por uma cena de caráter realista: cercada por nobres, eruditos e plebeus com roupas do século XVII, em um cenário de grande pompa e solenidade, uma jovem, em posição ereta, está prestes a receber a coroa de louros e o título de magistra et doctrix in philosophia dos notáveis do Sagrado Colégio da Universidade de Pádua.
A história da redescoberta de Elena Lucrezia Cornaro Piscopia, a primeira mulher formada no mundo, começa a partir desse College estadunidense, uma das primeiras instituições femininas de Ensino Superior dos Estados Unidos, fundado em 1861 por Matthew Vassar, empreendedor filho de migrantes ingleses que havia acumulado uma notável fortuna graças ao sucesso das suas diversas atividades econômicas.
O grande vitral, doado pela filantropa Mary Clark Thompson, que também era promotora da biblioteca do College, foi instalada em 1906. O tema foi inspirado na biografia de Elena Cornaro, escrita e publicada em inglês em 1896 pela abadessa beneditina Mechtild Pynsent [1].
Elena, mulher de extraordinária erudição e oblata beneditina, filha do patrício veneziano Giovanni Battista Cornaro Piscopia, havia sido, em 25 de junho de 1678, a primeira mulher do mundo a obter um diploma: a representação da cerimônia solene no vitral da biblioteca se propunha a estimular nas estudantes do Vassar College o amor pelo conhecimento e a consciência da importância do estudo em suas trajetórias de educação e formação.
Entre as jovens que, nos anos 1910, passavam as tardes naquela sala de leitura, estava Ruth Crawford. Depois de se formar no Vassar College em 1912, Ruth embarcou em um caminho de aprofundamento no âmbito das Ciências Sociais que a levou a viajar muito, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Retornando aos Estados Unidos em 1922, ela se estabeleceu em Pittsburgh, na Pensilvânia, onde obteve a cátedra de Sociologia na universidade local.
Crawford dedicou-se intensamente ao estudo das problemáticas relativas à imigração, interessando-se pelas diversas culturas presentes na realidade multiétnica da cidade.
A Cathedral of Learning (Catedral da Aprendizagem) da universidade, com os seus 42 andares, estava prestes a ser concluída, e Crawford foi chamada para supervisionar a organização das Nationality Rooms [2], salas de aula dedicadas a cada uma das realidades étnicas presentes em Pittsburgh naqueles anos.
Ao entrar em contato com o comitê ítalo-americano, que devia providenciar a preparação da sala de aula dos italianos, Ruth Crawford não deixou de se lembrar da jovem sábia sob cujo olhar ela havia concluído o seu percurso de estudos no Vassar College.
E assim, entre o teto em caixotões e a boiserie de estilo renascentista toscano, na Italian Room da Catedral da Aprendizagem em Pittsburgh, desde 1949, um afresco de parede inteira lembra a veneziana Elena Lucrezia Cornaro Piscopia, primeira mulher graduada no mundo, retratada entre os instrumentos da sua pesquisa e do seu saber.
Enquanto isso, Ruth Crawford começou a entrar em contato com o ambiente universitário e beneditino de Pádua, esforçando-se energicamente, por meio de correspondências e visitas diretas, para solicitar a recuperação do memorial de Elena Cornaro também na Itália e, sobretudo, na cidade que lhe havia conferido o diploma.
Graças ao empenho apaixonado e tenaz de Crawford, em 1969, em Pádua, começou a fase preparatória das celebrações que, em 1978, recordariam solenemente o terceiro centenário do doutorado da primeira mulher graduada do mundo.
A dedicação de Ruth Crawford permitiu tirar do silêncio a história humana e intelectual de Elena Cornaro, abrindo caminho para interessantes percursos de investigação que estão devolvendo à figura da nobre veneziana uma significativa densidade histórica, tendo como pano de fundo aquele século XVII barroco que também em Veneza conheceu diversas formas de protagonismo feminino [3].
Mas a história de Elena Lucrezia Cornaro Piscopia, hoje, para nós, também conserva em si a história da sua redescoberta, ou seja, a história de um fio memorial que não se perdeu no silêncio, como ocorreu com infinitas outras histórias de mulheres.
A história dessa “Elena redescoberta” nos chama a fazer as contas com a paixão de uma estudiosa como Ruth Crawford, uma mulher que sentiu profundamente a importância, a beleza e a força de poder se comparar e se referir, na sua própria experiência viva, com uma auctoritas feminina.
À distância de cerca de 40 das celebrações do terceiro centenário do seu doutorado, a Universidade de Pádua criou o “Centro de Ateneu Elena Cornaro para os Saberes, as Culturas e as Políticas de Gênero”, que, por sua vez, desde 2019, promove o Prêmio de Estudo “Elena Lucrezia Cornaro Piscopia – Universidade de Pádua”, uma iniciativa “que visa a favorecer e a premiar, com um montante igual a 5.000 euros, estudos que reconstroem a história dos saberes, da pesquisa e do ensino em que as mulheres se comprometeram ao longo do tempo, identificando ou ressaltando a contribuição de autoridade de figuras femininas, propondo novos estudos sobre as diferenças/disparidades de gênero detectáveis nos vários âmbitos científico-disciplinares, oferecendo intervenções que digam respeito aos saberes científicos e humanistas a partir de uma perspectiva feminista ou dos estudos de gênero” [4].
A Universidade de Pádua está realizando as celebrações pelos seus 800 anos de história, liderada pela primeira vez por uma magnífica reitora, a professora Daniela Mapelli. Com todo o respeito ao historiador Barbero que, com um limitado sentido histórico, há alguns meses externalizou considerações estranhas sobre a “insegurança estrutural” das mulheres como limite para a sua capacidade de fazer carreira.
“Bem-aventurado és tu, leitor, se não pertences ao sexo ao qual todos os bens são proibidos, com a privação da liberdade, com o intuito de lhe constituir como única felicidade, como virtudes soberanas e únicas: ser ignorante, fazer-se de tola e servir” [5].
1. Cf. “Elena Lucrezia Cornaro Piscopia – Prima donna laureata nel mondo, terzo centenario del dottorato (1678-1978)”, editado por Maria Ildegarde Tonzig, Universidade de Pádua, 1980.
2. Disponível aqui.
3. Basta lembrar aqui a denúncia das monacações forçadas e da misoginia eclesiástica em Arcangela Tarabotti (1604-1652); a musicista Barbara Strozzi (1619-1677); a estada veneziana de Artemisia Gentileschi (1593-1656).
4. Disponível aqui.
5. Marie de Gournay, “Egalité des Hommes et des Femmes (1622)”, cit. in Claude Dulong, “La vita quotidiana delle donne nella Francia di Luigi XIV”, BUR 1986. Ainda é muito curto o arco de tempo em que as mulheres puderam se ver engajadas em preencher a lacuna secular ou, melhor, milenar em termos de desigualdade de educação, de liberdade e de possibilidade de escolha, em comparação com os homens. Mas é possível superar os obstáculos. Embora o santo cardeal Gregorio Barbarigo (1625-1697), em seu tempo, tenha manifestado toda a sua perplexidade quanto ao despropósito de “doutorar” uma mulher, demos muitos passos desde aquele 25 de junho de 1678, e continuaremos dando muitos outros.
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O despropósito de “doutorar” mulheres. Artigo de Anita Prati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU