26 Julho 2022
Complexo Alemão. Cabula. Jacarezinho. Paraisópolis. Os massacres policiais e as centenas de assassinatos políticos (um a cada oito dias) não são suficientes para que enxerguemos como afundamos na brutalidade — e busquemos saídas, escreve Almir Felitte, advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública, em artigo publicado por Outras Palavras, 22-07-2022.
A violência política está longe de ser uma novidade no Brasil. Da colonização aos tempos atuais, é difícil citar um grande processo político no país que não tenha sido forjado na violência. Aliás, para além dos grandes fatos históricos, é preciso que se diga que o próprio cotidiano brasileiro já se acostumou a ser construído através da brutalidade.
Nesse cenário, é impressionante que, em pleno 2022, boa parte da nossa sociedade parece ainda esperar pela “grande fatalidade” que mudará o curso da história, como se esta já não estivesse se desenrolando diariamente, bem embaixo de nossos narizes, há tempos. Impressiona que, a cada novo caso de acirramento político, com a corda sempre sendo puxada para o lado fascista do país, parte da mídia, em tom inocente, alerta para quando o Brasil verá, enfim, o seu primeiro morto.
Foi preciso algo tão explícito, como a gravação de um assassinato à sangue frio de um homem vestido com uma camiseta do Lula pelas mãos de outro aos gritos de “Aqui é Bolsonaro!”, para que ao menos um pouco deste tom mudasse. Enfim, ao menos parte da imprensa do país reconheceu o seu primeiro morto. Da imprensa, porque, para a polícia civil paranaense, segue a narrativa de que Marcelo Arruda fora vítima apenas de um crime torpe.
Mas mesmo aos que enfim reconheceram o que é o Brasil de 2022, a constatação chega com anos de atraso. E não falo aqui de nossos mortos históricos, como Chico Mendes, Dorothy Stang, Carlos Marighella ou Iara Iavelberg. Falo de uma pilha de cadáveres que cresce desde que a Nova República foi posta em xeque no dia em que Aécio Neves jurou não reconhecer a sua derrota nas urnas.
Como poderia haver quem ainda esperasse o primeiro morto desde o assassinato de Marielle Franco e Anderson já em março de 2018? Isto apenas duas madrugadas depois do assassinato do líder de indígenas e quilombolas, Paulo Sérgio Almeida Nascimento, na cidade de Barcarena, interior do Pará, após denúncias de crimes ambientais cometidos pela empresa norueguesa Hydro na região. Meses mais tarde, Mestre Moa do Katendê seria mais uma vítima fatal após discussão política com um bolsonarista.
Vivemos em um país que, segundo a ONU, registrou 174 ativistas mortos só entre 2015 e 2019, numa média macabra de um assassinato a cada 8 dias. Em 2020, durante o governo que prometeu “passar a boiada” de ruralistas, mineradores e madeireiros sobre o país, ao menos 20 ambientalistas se somaram à sangrenta lista, 10% de todos os ativistas do meio-ambiente mortos no mundo naquele ano.
Em junho de 2022, mais duas vítimas teriam seus nomes correndo pelo mundo. Onde estariam o jornalista Dom e o indigenista Bruno? Uma pergunta que se fez apenas um mês depois do Brasil e do mundo também ter questionado onde estariam os Yanomami, após uma comunidade indígena inteira sumir por conta da ameaça de garimpeiros em Roraima.
Ao menos a comunidade ainda fora localizada com vida, ao contrário de Dom e Bruno, cujos corpos foram encontrados na mesma região em que, dois anos antes, Maxciel Pereira dos Santos, outro indigenista da FUNAI, já havia sido assassinado.
Neste país em que empilhamos mortos políticos, parece que já normalizamos o fato de que, desde 2018, nossas polícias têm quebrado a barreira das 6 mil mortes anuais pelas suas mãos. Cabula, Jacarezinho, Paraisópolis. Kathlen Romeu, o menino João Pedro, a menina Maria Eduarda, entre tantos outros. Nomes e comunidades que marcam a intensificação do processo de militarização e fascistização da política de nosso país nos últimos 8 anos.
Com tudo isso, e mesmo após as mais de 600 mil vítimas do descaso de um governo genocida que resolveu expor o próprio povo aos riscos de uma pandemia, ainda há quem espere pelo nosso primeiro morto?
Deveríamos mesmo é estar nos perguntando quando, enfim, teremos contabilizado nosso último morto. Mas, para isso, muitos outros questionamentos devem ser feitos: Como calaremos nossos militares de volta aos quartéis? Como chamaremos os policiais de volta da política para os batalhões e as delegacias? Como tiraremos as armas dos CAC’s? Como tiraremos as bíblias do Congresso? Como tiraremos os garimpeiros das florestas?
Nos EUA, Trump foi responsável por dar novo gás a elementos que sempre existiram: armamentismo, supremacismo branco, negacionismo científico e nacionalismo. Nenhuma dessas ideias recuou com a derrota de Trump nas urnas. Ao contrário, espera-se que o fraco e incoerente governo Biden as tornem ainda mais fortes.
É bobagem pensar que, no Brasil, todos os nossos problemas se resumam a figura de Jair Bolsonaro. Ele é apenas o representante maior e, quem sabe, descartável, de séculos de esqueletos que nosso país insistiu em esconder no armário. A pior face do nosso país resolveu sair às ruas desavergonhada e vai ser exigido muito esforço para que se contorne essa situação.
A cada hora estamos em uma nova campanha tentando descobrir quem matou quem, ou onde está o corpo de alguém. Charges com corpos, geralmente negros, estendidos sobre o sangue que escorre pelo chão têm virado algo puramente rotineiro em postagens nas redes sociais. Há tempos que o Brasil já não aguarda pelo seu primeiro morto. Simplesmente nos acostumamos e normalizamos um cotidiano de cadáveres.
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Sobre pilha de cadáveres, país espera seu primeiro morto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU