"Assim como o coronavírus obrigou-nos a nos reinventarmos, a ética teológica não pode eximir-se de repensar todo o saber e fazer teológico. Faz-se urgente e necessário incorporar hábitos novos, estabelecer relações de maior qualidade, edificar uma cultura de mais respeito e cuidado com quem sofre", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) ao comentar a obra Ética teológica e pandemias: entre a razão e a urgência social, de José Antonio Trasferetti e Ronaldo Zacharias.
A pandemia da COVID-19 nunca será um fato isolado, mas um ponto de parada obrigatório para repensar o que pensamos e fazemos. A obra Ética teológica e pandemias: entre a razão e a urgência social (Paulus, 2022, 232 p.), organizada pelos doutores em Teologia Moral, José Antonio Trasferetti e Ronaldo Zacharias, parte do marco pandêmico para sugerir que seja repensado o “fazer teológico” na sua globalidade. A gravidade dos fatos – de modo especial as urgências sociais que deles derivam – provocados pelo coronavírus obrigam-nos a repensar a ética teológica, a bioética, a economia, a eclesiologia, a liturgia, a educação, as relações e até mesmo o sentido da vida e da morte. É ao redor desses temas que a obra é estruturada.
Ética Teológica e Pandemias - Entre a Razão e a Urgência Social (Foto: Divulgação)
Na primeira reflexão – As pandemias na história: implicações teológicas e pastorais (p. 13-46) –, Ney de Souza, doutor em História Eclesiástica, apresenta um relato histórico das principais epidemias e pandemias desde o período anterior a Cristo até a SARS-CoV-2 e sua doença, a COVID-19. Passando pela Grécia Antiga (p. 15-17), Império Romano (p. 17-18), mundo medieval (p. 18-25), mundo moderno (p. 25-30) e mundo contemporâneo (p. 30-43), o autor aponta sempre o papel da instituição religiosa cristã diante das enfermidades que assolaram e assolam a humanidade. Por mais que o panorama histórico seja ameaçador – sobretudo porque ele nos faz entender que viveremos sempre lidando com novas epidemias e pandemias – o autor é muito positivo ao abordar o papel das ciências no enfrentamento de tais situações, a atitude de cuidado com os que sofrem por parte da Igreja e a urgência de as atividades pastorais incorporarem uma nova dinâmica para lidar com a dor, o sofrimento e a morte.
Na segunda reflexão – Repensar a ética teológica: rumo a uma nova capacidade vulnerável de permanecer em solidariedade, esperança e justo reconhecimento (p. 47-77) –, James F. Keenan, doutor em Teologia Moral, argumenta que a COVID-19 nos revelou “uma enorme e vergonhosa desigualdade que nos chama a uma compreensão mais ampla da vulnerabilidade e solidariedades humanas” (p. 47). Keenan divide sua reflexão em três partes: num primeiro momento, questiona o que estamos aprendendo com a irrupção da COVID-19 e com a interrupção provocada por ela na vida do mundo todo (p. 47); chama a atenção para o engano a respeito do progresso humano (p. 49-50), para as surpreendentes desigualdades, escandalosamente tornadas visíveis (p. 50-52) e para o impacto da pandemia sobre as mulheres (p. 53).
Em seguida, o autor desenvolve uma nova ética teológica baseada na vulnerabilidade e na solidariedade, considerando as significativas reivindicações éticas provindas da África do Sul, da Colômbia, da Itália e dos Estados Unidos (p. 53-65).
Por fim, apresenta algumas medidas/passos a serem tomadas/os, tais como, a confissão das nossas iniquidades (p. 67-68), a urgência de uma consciência social que brote da solidariedade (p. 68-69), a necessidade de se crescer em humildade epistêmica (p. 69-70) e a capacidade de afirmação da vulnerabilidade (p. 70-72).
Na terceira reflexão – Repensar a bioética: os desafios éticos da saúde global em tempos de COVID-19 (p. 79-104) –, Alexandre Andrade Martins, doutor em Ética Teológica, tendo em conta os desafios éticos da saúde global (p. 79-84) e levando em consideração o que já alcançamos como humanidade (p. 84), reflete, em primeiro lugar, o que significa a saúde global estar sendo corroída pela pandemia (p. 84-89), e, em seguida, apresenta um mapeamento dos desafios bioéticos diretamente criados pela pandemia (p. 89-92). Martins conclui tecendo uma leitura em perspectiva teológica dessa realidade e dos espaços em que a bioética precisa se fazer presente para contribuir na (re)construção do mundo pós-pandemia (p. 93-99), ressaltando que “a crise e os dilemas éticos criados e revelados pela pandemia da COVID-19 são uma oportunidade para repensar prioridades e avançar na relação entre bioética e saúde global” (p. 100).
Na quarta reflexão – Repensar a economia: uma nova economia à luz da ética do cuidado (p. 105-121) –, Alessandra Smerilli, doutora em Economia e Economia Política, defende a necessidade de “repensar uma ética econômica à altura do mundo que virá, à altura das expectativas das futuras gerações, recordando-nos de que as expectativas dos jovens são solicitações urgentes para nós, adultos” (p. 108). A autora delineia a importância da transição para uma ética do cuidado em vista de uma nova economia que saiba adequar-se aos desafios tecnológicos, ecológicos e sociais do amanhã, atualmente pressentidos, isto é, para uma ética do cuidado que tenha como perspectiva gerar uma economia na qual o ser humano e o meio ambiente possam ser colocados ao centro (p. 108-116). Quanto à ética do cuidado, Smerilli destaca que “é uma das vias a ser percorrida para dar alma à economia, embora existam outras, que vão da responsabilidade ecológica à cidadania digital, da finança ética a uma renovada atenção aos bens comuns” (p. 118).
Na quinta reflexão – Repensar a eclesiologia e a liturgia: a pandemia, a autoridade da fé e a fragilidade impedida (p. 123-154) –, Andrea Grillo, doutor em Teologia, destaca que a COVID-19 “fez cair diversas máscaras, tanto na sociedade quanto na Igreja” (p. 123). Para o autor, urge analisar as condições da celebração da fé em comunidade, não sem considerar a problemática correlação entre liturgia e fragilidade num contexto de contingência pandêmica (p. 125-131). Para ele, o impacto da COVID-19 na maneira de a Igreja e os fiéis celebrarem e viver a liturgia foi enorme. Ao mesmo tempo em que foram abertas novas possibilidades de celebração da fé, valores essenciais da liturgia sucumbiram às diferentes formas celebrativas. Tudo isso revelou a fragilidade do rito, tanto na sua exterioridade vital quanto no seu significado pessoal e eclesial. O protocolo sanitário, como condição imposta para vencer a pandemia, subtraiu das celebrações litúrgicas o contato e a proximidade com o outro, não deixando, assim, de comprometer a compreensão e a visibilidade das celebrações como experiência de comunhão e de expressão comunitária da fé (p. 146-153).
Na sexta reflexão – Repensar a educação: uma proposta na contramão de processos de desumanização (p. 155-180) –, proposta por Ronaldo Zacharias, doutor em Teologia Moral, são três os momentos percorridos: a importância e a urgência de aprender a ler e interpretar o que acontece (p. 159-165); aprender a olhar com respeito e a cuidar dos que mais precisam (p. 166-171) e aprender a ser compassivo e misericordioso (p. 171-176). Zacharias aborda o que “significa e implica repensar algumas posturas e atitudes com base na realidade provocada pelo coronavírus e pela COVID-19, por estar convencido de que o contexto dramático que estamos vivendo não pode asfixiar os valores necessários para enfrentarmos a profunda crise que atravessamos como humanidade” (p. 158). Sua abordagem é feita “na mesma perspectiva assumida pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium, isto é, na linha de um discernimento evangélico, o que implica procurar olhar para a realidade com os olhos de Deus e tentar sentir o drama da existência humana com o coração de Deus. Consequentemente, será impossível não deixar claras posturas e atitudes que podem ser fruto do Reino e as que atentam contra o projeto de Deus para a humanidade” (p. 159).
Na sétima reflexão – Repensar as relações: a urgência de superar o analfabetismo afetivo (p. 181-204) –, Maria Inês de Castro Millen, doutora em Teologia Moral, considera como as pessoas estão se relacionando/se relacionaram no contexto da pandemia provocada pelo coronavírus. Para isso, apresenta, em primeiro lugar, um mapeamento da situação de vida antes (p. 181-185) e durante essa realidade tristemente experimentada (p. 185-191) e, num terceiro momento aponta alguns caminhos de esperança: favorecer um diálogo amistoso e sincero, incentivar uma nova forma de espiritualidade que não sucumba a um “Cristo sem carne”, apoiar e experienciar a revolução da ternura, assumir a pedagogia do Ubuntu, recuperar as virtudes e os valores humanos, implantar uma educação integradora, desenvolver uma colaboração social que busque acolher, proteger, promover e integrar todas as pessoas e todo o criado, visar um novo paradigma civilizatório, um novo modelo econômico, uma nova lógica para presidir nosso pensar e agir, edificar uma cultura do encontro, da tolerância, da não violência e da paz e privilegiar a ética do cuidado e a ética paraclética (p. 191-21).
Na oitava reflexão – Repensar o sentido da vida à luz da iminência da morte: corpos em xeque-mate, mortes evitáveis, negacionismo e necropolítica (p. 205-227) –, de autoria de José Antonio Trasferetti, doutor em Teologia, a pandemia da COVID-19 “tornou 2020 o ano que todos pensavam ser o mais letal para os brasileiros” (p. 205), e, se, a “iminência da morte tornou-se real” (p. 207), a ética teológica ensinou-nos “que o amor oblativo se concretiza nos cuidados preventivos que afastam o vírus e nos preparam para a concretude da morte física como uma realidade cotidiana iminente” (p. 226). Para o autor, não podemos e não queremos “morrer como vítimas da ignorância, do negacionismo político ou da barbárie. Recusamo-nos a aceitar o genocídio por descaso, indiferença ou banalização social! Não queremos práticas comportamentais e políticas que se imponham de forma necrófila, como opção deliberada contra a vida e os seus cuidados primeiros” (p. 226-227). Embora um vírus invisível nos tenha aproximado mais da morte (p. 208-210), isto é, um vírus inesperado tenha resultado em mortes anunciadas (p. 210-213) e feito muita gente entender que com a morte não se brinca, há uma constatação que todos experimentaram na própria carne: a indiferença mata (p. 213-220), o negacionismo tem uma face necropolítica (p. 220-222), e apenas a força da espiritualidade é capaz de fazer com que não banalizemos a morte (p. 223-225).
Se, por um lado, a pandemia provocada pela COVID-19 apanhou todo mundo de surpresa, por outro, ela nos deu a oportunidade de “repensar” aspectos fundamentais da existência humana. Assim como o coronavírus obrigou-nos a nos reinventarmos, a ética teológica não pode eximir-se de repensar todo o saber e fazer teológico. Faz-se urgente e necessário incorporar hábitos novos, estabelecer relações de maior qualidade, edificar uma cultura de mais respeito e cuidado com quem sofre. Eis o horizonte para o qual nos conduzem as reflexões desta obra coletiva. Elas nos oferecem elementos de discernimento.
Cesar Kuzma, doutor em Teologia, na Apresentação da obra (p. 5-12), destaca que o valor e o alcance dela está em “oferecer elementos de orientação e de ajuda para entender este momento de forma construtiva, progressiva e num somar de forças com outras perspectivas que estão buscando avançar nesta questão” (p. 5). Ela é, por isso, “um convite à reflexão e à ação, a novos entendimentos e a novas práticas, buscando o cuidado, a defesa dos mais frágeis, na sensibilidade com os que sofrem e na esperança que atua e que nos faz continuar a esperar que outro mundo é possível” (p. 11).
Esta obra abre inúmeras janelas para quem quiser aprofundar temáticas como a ética teológica, a bioética, a economia, a eclesiologia, a liturgia, a educação, os relacionamentos humanos, o sentido da vida e da morte. Trata-se de uma leitura de grande alcance pastoral, capaz de pavimentar caminhos de renovada presença evangélica em contextos caracterizados muitas vezes por um sofrimento inevitável, mas por mortes que poderiam, sim, ser evitadas.