22 Junho 2022
"É constrangedor constatar que entre os presbíteros, que são aqueles a quem é confiada a liderança da comunidade e da liturgia, muitas vezes encontramos as novas gerações mais rígidas e ancoradas ao passado da velha guarda que, de alguma forma, tentou se atualizar. A rigidez de pontos de vista e posições é difícil de curar", escreve Paolo Cugini, padre italiano, da diocese de Reggio Emilia, que foi missionário na diocese de Alto Solimões, AM, e hoje é administrador paroquial de quatro paróquias da zona rural bolonhesa, em artigo publicado por Viandanti, 17-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A mudança cultural marcante em curso provoca a comunidade cristã. Há décadas que essa mudança vem sendo percebida e está afetando todos os aspectos do mundo ocidental. Não é por acaso que se fala de cultura não só pós-moderna, mas também pós-secular, pós-cristã, como para sinalizar que a mudança em curso envolve também a comunidade cristã.
Frente às mudanças, muitas vezes nos encontramos despreparados também porque, como nos lembrou o pensador francês Charles Péguy, a alma tende à tranquilidade, a deitar-se em pensamentos já prontos.
Não se trata de pensar apenas novos caminhos da evangelização ou de reevangelização, mas também e, talvez, sobretudo, de pensar em novas modalidades da celebração litúrgica. Não podemos pensar em repropor o estilo litúrgico habitual ou, como infelizmente acontece em momentos de mudança, vasculhar os baús da memória para reviver liturgias obsoletas, verdadeiras peças de museu, que nada dizem no novo contexto cultural, senão um pouco de sentimentalismo religioso para os nostálgicos do momento.
É uma questão de repensar a liturgia, sua maneira de comunicar com o povo de Deus os mistérios que estão no centro da fé, a fim de fornecer uma linguagem inteligível às pessoas que se aproximam dos sacramentos da igreja e de seus mistérios. De modo particular, torna-se necessário pensar nas eucaristias dominicais, para torná-las momentos significativos para as pessoas que participam, espaços acolhedores e pontes para o Mistério.
A convicção é que não é uma questão de inventar nada em particular, mas de recuperar o que existe, as fontes de nossa fé, que são a palavra de Deus e a tradição da Igreja, como nos ensinou o Concílio Vaticano II (Dei Verbum, 12).
O tema da liturgia é importante porque reflete o modo de entender Deus: do modo como uma comunidade celebra a Eucaristia, entende-se em que Deus acredita. A insistência no preceito provocou o esvaziamento da dimensão relacional e comunitária, que está na base do significado da liturgia eucarística, entendida como ação do povo.
A pregação que, durante séculos, insistiu na obrigação do preceito dominical, se por um lado provocou a disseminação da missa dominical como hábito necessário para a salvação, por outro a entregou definitivamente nas mãos da classe sacerdotal, retirando-a, assim, do povo de Deus. Houve, portanto, um processo de desnaturação em relação ao significado original que Jesus quis dar à Eucaristia, como sinal de sua presença no meio de seus irmãos e irmãs e como momento de entrega à comunidade de sua mensagem central.
O novo contexto cultural em que estamos imersos, se por um lado se mostra insensível aos aspectos religiosos devido à sua marcada dimensão materialista, por outro permite recuperar alguns aspectos que foram perdidos ao longo do tempo. O esvaziamento da leitura metafísica e ontológica da realidade, que se completou na época pós-moderna, abriu caminho para a pluralidade das narrativas possíveis dos eventos. Dessa forma, passa-se de uma abordagem constritiva da religião, com preceitos, obrigações e deveres, que circunscrevem o modo de pertencimento ao sagrado, para um tipo de abordagem livre, baseada mais na compreensão subjetiva do que na coerção, mais na hermenêutica que na metafísica.
Hoje as gerações mais jovens são totalmente indiferentes às obrigações e às ameaças dos preceitos religiosos. Passar de um estilo coercitivo para uma proposta que estimule o livre interesse das pessoas pela proposta religiosa exige uma mudança radical de paradigma, que requer a disponibilidade para não identificar a bondade da proposta com a quantidade numérica de quem participa. O controle coercitivo do povo pela casta sacerdotal, amparado pelo clima político e social que permitia tal estilo, provocava imediatamente a presença massiva dos fiéis nos momentos religiosos.
A certa altura do caminho, a Igreja, ao invés de se preocupar em propor o estilo do fundador, deixou-se levar pela possibilidade real de controlar as massas que, ao mesmo tempo, significava a possibilidade de contar no debate político e social. Quem controla as massas controla o poder. Certos dispositivos doutrinários, como a confissão obrigatória antes da Eucaristia, exacerbaram o controle da classe sacerdotal sobre os fiéis, ao invés de propor um caminho de liberdade como proposto pelo Mestre. O mesmo pode ser dito sobre a imposição do celibato sacerdotal para os candidatos ao sacerdócio, que estigmatizou um processo de diversificação do clero em relação ao povo e, em particular, às mulheres.
A jurisprudência canônica, a teologia e a espiritualidade que se desenvolvem a partir do século X d.C. são aliadas para sustentar o mesmo discurso da necessidade de uma classe sacerdotal para gerir o sagrado. A liturgia é o espaço mais idôneo em que se manifesta esse fenômeno mais político que religioso. A arquitetura dos espaços religiosos é o documento histórico mais visível desse processo de desconstrução política da mensagem evangélica, em favor de uma instituição que, em determinado momento, decide seguir seu próprio caminho, esquecendo a origem do percurso.
Nos edifícios destinados às manifestações litúrgicas, o espaço em que a classe sacerdotal administra o sagrado sofre uma dupla operação arquitetônica. Existe, de fato, um processo de separação do espaço atribuído ao sacerdote, que desempenha as suas funções do resto do povo. Essa separação é destacada por estruturas específicas - as balaustradas - que indicam até onde o povo pode chegar. Em segundo lugar, assiste-se a uma progressiva elevação da zona denominada presbitério, com o objetivo de tornar visível o espaço sagrado.
Os historiadores da liturgia nos alertam que essas mudanças ocorrem no período em que, devido às invasões bárbaras que assolam o Império Romano, se perdem os dados bíblicos e patrísticos e a liturgia sofre a nova orientação de tipo materialista do mundo religioso. Não se busca mais a chamada dimensão ontológica dos eventos que acompanharam a vida de Jesus, para repropô-los na liturgia, mas se tenta reproduzir o mais fielmente possível o que aconteceu materialmente. A elevação do presbitério deveria, nesta perspectiva, significar o monte das oliveiras em que Jesus viveu a paixão. O peso da sedimentação cultural.
Simultaneamente a esse fenômeno, há outro que o acompanha. Trata-se da identificação progressiva da Igreja com o Império Romano, que se tornou o Sacro Império Romano. Um sinal muito claro no campo litúrgico dessa identificação são as vestes litúrgicas, que mais do que sinal da presença da pobreza do mestre, são o símbolo do poder político do Império Romano. Além disso, nos séculos de domínio temporal da igreja, não faltarão liturgias nas quais se manifestará o poder da igreja sobre príncipes, reis e imperadores. Essas deformações da mensagem original que convergiram para a liturgia, permitem compreender não só a necessidade de uma reforma litúrgica ocorrida no Concílio Vaticano II mas, sobretudo, a dificuldade de a concretizar devido aos saudosistas de plantão, que são incapazes de libertar suas mentes das formas do passado. Afinal, como dizia Thomas Kuhn, as estruturas culturais se acomodam a tal ponto que mesmo uma revolução cultural não é capaz de provocar mudanças imediatas. Sessenta anos de história não são quase nada comparados aos quinze séculos da orientação anterior.
Os pobres, os excluídos da sociedade, os marginalizados, as pessoas que, de alguma forma, são discriminadas, deveriam encontrar acolhimento na comunidade cristã. O espaço litúrgico, as celebrações dos sacramentos e, em particular, a celebração eucarística dominical, expressão da vida da comunidade, deveria ser realizada de modo a evidenciar o estilo acolhedor e aberto a todos e a todas. O acolhimento deveria ser um aspecto normal na vida dos cristãos, dos seguidores de Jesus e, ao contrário, muitas vezes não é assim. Por um lado, há uma estratificação de ignorância misturada a preconceitos difíceis de alterar, que podem ser encontrados não apenas em algumas pessoas que frequentam a comunidade, mas na sociedade em geral. Por outro lado, e esse é o aspecto mais complexo, existe o peso de uma orientação litúrgica ligada à forma, ao rito, que geralmente se traduzem em formalismo e ritualismo.
Não é fácil preparar liturgias vivas e acolhedoras em contextos comunitários dominados pelo medo da mudança e pela identificação da verdade com a imobilidade. É na liturgia que se nota, mais do que em outras esferas religiosas, a tendência de preencher o presente com os vestígios do passado, quando não há disponibilidade para pensar em elaborar algo novo, atentos às mudanças em curso e, sobretudo, às pessoas que vivem a novidade da cotidianidade.
É constrangedor constatar que entre os presbíteros, que são aqueles a quem é confiada a liderança da comunidade e da liturgia, muitas vezes encontramos as novas gerações mais rígidas e ancoradas ao passado da velha guarda que, de alguma forma, tentou se atualizar. A rigidez de pontos de vista e posições é difícil de curar.
Às vezes só o tempo consegue riscar o granito das visões monolíticas e unidirecionais, muitas vezes superficiais e pouco aprofundadas.
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Como limpar nossas liturgias dos vestígios do passado? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU