21 Junho 2022
"Indignação e a solidariedade cobram responsabilização de todos quantos, de alguma forma, concorreram para a morte de Bruno e de Dom, sujando suas mãos ou sua boca. Mas, também exigem construir condições para que estas práticas não se repitam, nos confins da Amazônia e em todos os outros territórios", escreve Paulo César Carbonari, doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil).
"Não é incompetência nem descaso. É método. [...] Desqualificar as vítimas, como sabemos bem, é método recorrente. E funciona. Tenho tentado explicar a pessoas próximas que não há escolha entre lutar e não lutar. A escolha é apenas entre escolher viver lutando ou esperar que a guerra mate tudo aquilo que você ama e respeita [*].
Mais duas vidas se vão, de morte matada! Vidas defensoras dos direitos dos povos indígenas, dos direitos da terra, dos direitos da Amazônia, dos direitos humanos. Inaceitável. Revoltante. Nenhuma vida a menos. Justiça para Bruno e Dom.
A vida, todas as vidas, cada uma das vidas, sacrificada na causa da vida é geradora de mais vida. O testemunho dos que ficam, seguem em sua memória, atuando nas causas que legaram. Assim como Bruno e Dom herdaram as causas pelas quais foram mortos, nos legam estas mesmas causas para que sigamos levando-as como luta permanente pela vida.
A solidariedade e a indignação nascem da responsabilidade. A indignação por sentir a dignidade sendo atacada, violentada, destruída, morta. A solidariedade por fazer-se parte da mesma causa, das mesmas lutas, que se nutrem do mesmo solo e, por isso, numa base sólida, comum. Tanto uma quanto a outra fazem nos entendermos interdependentes e interrelacionados/as com os/as outros/as. São formas de res-ponder, de res-ponsabilidade, com as alteridades. A responsabilidade as faz nascer, mais uma vez, diante de Bruno e Dom.
A indignação faz com que não aceitemos a morte. A morte de Bruno, de Dom e todas as mortes de defensores/as de direitos humanos, infelizmente muitas, cada vez mais. Faz também com que não aceitemos que qualquer desaparecimento ou morte seja relativizado. Que repudiemos seus executores, seus mandantes e os motivos que a ela levaram. O modo como foi feita. Esquartejamento, carbonização, modos de fazer com crueldade, com perversidade, com ódio intenso.
As milícias armadas, que se alimentam das práticas predatórias dos bens naturais e das vidas humanas, foram incentivadas pelos agentes do poder e do dinheiro. O primeiro mandante do país, que sequer foi capaz de dizer o nome dos dois mortos e que se referiu pejorativamente a eles em várias manifestações públicas, culpou-os pelo que lhes aconteceu, tem sangue nas mãos: incentivou todo tipo de ilegalidade – é a face cínica do fascismo da hora.
Solidariedade aos indígenas que foram autores da denúncia do que estava acontecendo e partícipes incansáveis nas buscas, que não só colaboraram com as autoridades, mas as dirigiram para que a morosidade fosse denunciada e se chegasse ao desfecho nas investigações. Solidariedade com familiares e amigos/as dos mortos. Solidariedade com todas as organizações indígenas e indigenistas, as organizações de jornalistas, enfim, todas as organizações que fazem a proteção a defensores/as de direitos humanos.
A solidariedade nasce da verdadeira e genuína revolta, pois ela leva a fazer-se próximo e presente com quem sofre a violência e as violações, as vítimas. A solidariedade aflora desde a alteridade, por ela e com ela. Carrega a revolta contra toda a opressão e todas as práticas repressivas, promotoras de morte. Uma solidariedade que se faz responsabilidade, na cumplicidade íntima com aqueles/as que lutam por justiça e que, por isso, compartilham causas e se fazem dom, doação, graça, muito mais do que qualquer reciprocidade poderia esperar, um viver em comum, em comunidade.
A indignação e a solidariedade cobram responsabilização de todos quantos, de alguma forma, concorreram para a morte de Bruno e de Dom, sujando suas mãos ou sua boca. Mas, também exigem construir condições para que estas práticas não se repitam, nos confins da Amazônia e em todos os outros territórios. Também clamam para a necessidade de afastar dos postos de poder todos que as patrocinam, defendem e promovem, dando-lhes apoio e conivência. O serviço à acumulação e à concentração criminosas, que se revelam na pesca ilegal, na mineração ilegal, no desmatamento ilegal, no narcotráfico ilegal... na morte, precisa acabar, porque, afinal, tudo é mais do que ilegal, é imoral e injusto... desumanidade, face do capitalismo em ação... promovida e patrocinada pelos condutores da “boiada”.
Se o autoritarismo fascista, como sugeria Freud, em "Mal-estar na civilização", não é um retorno ao arcaico, mas o exercício dele como reprodução na e pela civilização, então todos os ataques aos povos indígenas, todos os ataques à Amazônia, todos os ataques a defensores/as de direitos humanos, mais que práticas anticivilizatórias, são práticas de uma certa civilização, aquela que se orienta pelo extermínio, pelo genocídio, pela morte como principal prática civilizatória – da qual os povos originários são as principais testemunhas e vítimas, há séculos. Práticas que não são experimento, nem incompetência e nem mesmo descaso, são “método”, que funciona, contra os/as pobre e aqueles/as que com eles/as se solidarizam.
[*] Não é incompetência nem descaso: é método. Com o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, um limite foi ultrapassado na Amazônia – a nós, que estamos vivos, só nos cabe a luta. Artigo de Eliane Brum, publicado no jornal Nexo em 13-06-2022 e atualizado pela autora em 16-06-2022. Disponível aqui.
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Bruno e Dom. Presente, agora e sempre! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU