Desafios socioambientais e tecnológicos no Rio Grande do Sul. Uma análise a partir de Milton Santos

"Ciclo de Estudos Milton Santos. Espaço, Tempo, Razão e Emoção" debate desafios socioambientais e tecnológicos no Rio Grande do Sul

Foto: Campanha Despejo Zero

Por: Patricia Fachin | 31 Mai 2022

 

"A humanidade, durante dois séculos, sonhou com a possibilidade de uma ciência a serviço do homem e quando isso se obtém exatamente, esses objetivos são deixados de lado para que a globalização que estamos presenciando sirva a um número limitado não só de pessoas, mas de empresas e instituições. Essa é a crítica essencial". A declaração acima poderia estar na boca de qualquer intelectual que analisa o desenvolvimento técnico-científico e seus efeitos, assim como as consequências da globalização e do crescimento de empresas multinacionais que têm mais poder de ingerência na economia global do que cada Estado-nação em particular, mas a constatação é de 25 anos atrás e foi expressa pelo geógrafo Milton Santos em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura em 1997, quatro anos antes de seu falecimento.

 

Os dilemas que todos os países enfrentam nas últimas décadas, de aderirem completamente à um modelo exclusivo de globalização porque do contrário ficarão à margem do desenvolvimento capitalista, ou fecharem-se totalmente em si mesmos, apostando em nacionalismos, foi um dos temas comentados pelo geógrafo. A visão de que os países são reféns do sistema é, segundo ele, "um tipo de raciocínio a-histórico. Se olharmos para trás e observarmos tudo que o mundo se tornou através do tempo, vemos que as possibilidades de uso daquilo que é criado são numerosas. Por que no fim deste século [XX] haveria uma só senda, um só caminho, um só resultado? É isso que temos que começar a discutir, entender por que é assim, e buscar, através da análise, formas de sugerir outras maneiras de combinar o que aí está".

 

 

 

A partir do "olhar de Milton Santos para as céleres transformações de um mundo que opera através do meio técnico-científico-informacional", o Instituto Humanitas Unisinos - IHU está promovendo o "Ciclo de Estudos Milton Santos. Espaço, Tempo, Razão e Emoção", que iniciou em março e se encerra nesta quarta-feira, 01-06-2022, com a palestra "Desafios socioambientais e tecnológicos no Rio Grande do Sul. Uma análise a partir de Milton Santos", que será ministrada pelo geógrafo Paulo Roberto Rodrigues Soares, às 19h30min. O evento será transmitido pela página eletrônica do IHU, pelas redes sociais e pelo canal do IHU no YouTube.

 


Paulo Soares (Foto: Reprodução do YouTube)

 

 

Desenvolvimento técnico-científico no âmbito local

 

O pesquisador do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles analisa as transformações geradas pelo conhecimento técnico-científico no âmbito local, na organização e planejamento das cidades. Se, de um lado, do ponto de vista da infraestrutura é possível observar grandes saltos tecnológicos, que permitem a resolução de problemas de modo muito mais eficiente e rápido se comparado a décadas passadas, como os processos de construção e urbanização, de outro, a realidade é que inúmeras localidades parecem estar instaladas em regiões pelas quais o desenvolvimento nunca passou. Essa situação pode ser vista em uma mesma cidade, onde confrontam-se zonas urbanizadas e com acesso à infraestrutura e outras, onde as pessoas vivem em ambientes que carecem de acesso ao saneamento básico. A própria moradia, apesar do avanço tecnológico na área de construção civil, continua sendo um sonho distante para inúmeros brasileiros, como os que vivem com familiares por não terem condições de obter a casa própria, ou aqueles que moram em barracos inadequados em zonas de ocupação enquanto aguardam resoluções sobre a legalização da terra, ou os que vivem nas ruas, improvisando residências.

 

 

 

Segundo o geografo, isso acontece porque os novos arranjos urbanos das metrópoles brasileiras se transformaram em novos empreendimentos do mercado imobiliário. A reestruturação das cidades por causa da industrialização das últimas décadas e do êxodo rural fez com que o mercado imobiliário criasse um novo produto, chamado de bairros planejados. "São grandes empreendimentos em áreas periféricas que não tinham essa ação do mercado imobiliário. Nesse sentido, há uma mudança significativa na estrutura das cidades pela localização desses grandes empreendimentos”, diz. O desenvolvimento, que deveria ter como consequência servir ao homem, como dizia Milton Santos, no caso das cidades, ficou relegado à segunda instância. “É levado em conta muito mais a possibilidade de rentabilidade desse investimento, e não exatamente a geografia urbana ou a relação deste empreendimento com um conjunto urbano já preexistente, com uma estrutura urbana já preexistente”, disse Paulo Roberto Rodrigues Soares em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2014. De acordo com ele, apesar da reestruturação urbana gerar novos pontos centrais de organização em algumas zonas urbanas, ela tem gerado uma “fragmentação” social, porque “o mercado imobiliário já programa os empreendimentos para um determinado público. Então, ao indicar determinado público, ele já homogeniza socialmente essas áreas”.

 

Mercantilização da vida

 

À época, ele comentou os investimentos feitos em grandes obras no país em contraposição aos problemas habitacionais da população mais vulnerável. "Os estádios e as áreas que receberam investimentos da Copa ganharam uma certa centralidade. Outra alteração foi a geração de grandes empreendimentos imobiliários no entorno dos estádios, e também houve transformações simbólicas à medida que determinados lugares ganharam um significado para a cidade", disse.

 

 

 

Em artigo publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Paulo Soares tratou sobre a mercantilização de todas as instâncias da vida humana e sobre a apropriação privada das cidades. “Vivemos uma era de mercantilização e capitalização de toda a nossa vida, tanto nos aspectos sociais como também nos aspectos pessoais. Essa mercantilização tem ligação com as transformações do capitalismo no final do século XX, sua passagem para uma fase financeira flexível (ou líquida, como colocam alguns). Hoje tudo é mercantilizável, tudo se transforma em commodity e é passível de investimento. A própria natureza é mercantilizada (vide as propagandas de condomínios fechados). A paisagem é mercantilizada (vide a valorização das favelas com 'vista para o mar', no Rio de Janeiro), logo o espaço urbano, a cidade, também é mercantilizada”, reitera.

 

Mesmo as tentativas de reorganizar as cidades a partir da construção de Planos Diretores, sublinha, para organizarem o espaço público e projetarem seu crescimento, virou objeto de mercantilização. "A obrigatoriedade dos Planos Diretores gerou alguns problemas, porque nem todo município tem capacidade para realizá-los, e isso gerou uma certa 'fábrica de Planos Diretores', porque planos passaram a ser feitos por empresas, em série, sem a realização de estudos necessários para realmente gerar um Plano Diretor adequado à realidade de determinados municípios". Segundo ele, "a obrigatoriedade é boa, mas os municípios não estão aparelhados, não têm corpo técnico para desenvolver os planos. Muitos municípios recorrem à universidade, mas também a universidade não tem como dar conta de toda essa tarefa, afinal só no Rio Grande do Sul são quase 400 municípios, e no Brasil são 6 mil municípios, ou seja, é uma quantidade muito grande para ser atendida".

 

Sobre o palestrante

 

Paulo Roberto Rodrigues Soares é doutor em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona, Espanha, mestre em Geografia pela Universidade Estadual Paulista - Unesp/Rio Claro e graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. É professor Associado do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e colaborador no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG.

 

As demais palestras do "Ciclo de Estudos Milton Santos. Espaço, Tempo, Razão e Emoção" estão disponíveis na página do evento ou no canal do IHU no YouTube.

 

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