04 Mai 2022
“Conhecer, compreender e, sobretudo, colocar em prática a “rebeldia” sobre a qual nos fala Milton Santos nos ajudaria no processo árduo e demorado de transformações que devemos implementar, sob pena de sacrificarmos a nossa própria existência como espécie”, escreve Verbena Córdula, professora titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus BA, em artigo publicado por Pressenza, 03-05-2022.
Nesta terça-feira, 3 de maio, Milton Santos completaria 96 anos de idade. O pensamento desse intelectual negro brasileiro, nascido na Bahia, é mais necessário do que nunca, dado o avanço do neoliberalismo em nível global, que tem devastado quase tudo o que encontra pela frente. Apesar de ter formação em Letras e em Direito, Santos era apaixonado pela Geografia e, para ele, esta ciência somente poderia ser compreendida a partir de um panorama econômico, político e social. Em sua visão, o dinheiro e as coisas não deveriam suplantar o valor do ser humano.
Milton Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, uma cidade baiana localizada na Chapada Diamantina, a cerca de 600 km da capital Salvador, onde atualmente vivem pouco mais de 10 mil habitantes (conforme o IBGE). Ele era filho de docentes, de quem, provavelmente, herdou essa vocação.
Santos foi professor no Ginásio Municipal de Ilhéus, no Sul da Bahia. Lecionou também na Faculdade Católica de Filosofia, na capital baiana. Durante sua vida passou por diversas instituições universitárias, a exemplo da Columbia University de Nova York, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade de São Paulo (USP). Foi também Doutor Honoris Causa por vinte instituições, a exemplo da Universidad de Buenos Aires (UBA), Universidad Complutense de Madrid (UCM), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Embora bacharel em Ciências e Letras, e também em Direito, Milton Santos é conhecido por seus estudos em Geografia, área na qual doutorou-se pela Université de Strasbourg, na França, em 1958. Segundo sua concepção, a Geografia deve dialogar com todos os ramos do saber que contribuam à compreensão geográfica dos fatos. Em sua obra, Milton Santos propõe analisar o espaço considerando toda a sua dinâmica, pois, para ele, o espaço geográfico é elemento determinante no contexto social.
Intelectual progressista, próximo a setores de esquerda, mas que, sobretudo, era um livre pensador, convencido de que a realidade social pode ser transformada a partir da ação das pessoas sobre o espaço, Santos foi mais um dos tantos alvos da intolerância e da truculência do regime ditatorial implementado no Brasil em 1964, que não admitia “pessoas com ideias”. Em consequência dessa perseguição passou 13 anos no exílio, havendo vivido em vários países, entre eles, Canadá, Tanzânia, França e Venezuela.
Em 1994 Milton Santos recebeu o prêmio Vautrin Lud, concedido anualmente, desde 1991, e outorgado no Festival Internacional de Geografia, na cidade de Saint-Dié-des-Vosges, França. Até hoje é o único latino-americano a conquistar essa distinção, considerada uma espécie de prêmio Nobel da Geografia. Autor de mais de 40 livros, Santos foi um crítico voraz do capitalismo, e da globalização.
Das diversas obras desse teórico mundialmente conhecido, uma que considero imprescindível para compreendermos o mundo no qual vivemos é Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Nela, Santos apresenta uma reflexão acerca das sociedades globalizadas e ressalta como essa forma de organização se materializa na produção predatória, depredadora e, por sua vez, na escassez de bens básicos para uma parcela considerável das pessoas em todo o mundo.
Nessa obra, Milton Santos critica, entre outras questões, o fato de o capitalismo nessa fase globalizante nos levar a um processo desenfreado de competitividade destrutiva, assim como à produção de novos totalitarismos. De acordo com ele, esse modelo de sociabilidade proposto pela globalização atual tem criado sucessivas crises – agora estamos vivenciando mais uma de muitas –, as quais se apresentam tanto em formato global como também em particularizações. E, segundo ele, por serem estruturais, essas crises somente poderão ser solucionadas através de medidas igualmente estruturais.
Conforme o geógrafo, a globalização na sua estrutura atual nos fez passar de um “uso imperialista” dos sistemas técnicos hegemônicos (segundo os continentes e lugares), à utilização destes em todos os países, graças ao papel unificante desempenhado pelas tecnologias de informação. Ele ressalta que, por força desse modelo, o manuseio das técnicas escapa do domínio da política e torna-se subserviente ao mercado.
Nessa obra o geógrafo afirma que, apesar de vivermos crises econômica, social, política e moral, a única que os poderosos desejam eliminar é a crise financeira, cuja solução está diretamente relacionada aos interesses dos setores hegemônicos. Ele ressalta a “tirania do dinheiro” como um dos pilares fundamentais dessa sociabilidade globalizada. De fato, quando observamos, grupos financeiros como JP Morgan, City Group, Goldman Sacs Group, Santander, Bilbao Viscaya – ou Itaú/Unibanco para citar um exemplo nacional –, nos damos conta de que Santos estava absolutamente correto nesta afirmação. A crise financeira ocorrida há 14 anos, e a pandemia da Covid-19 ainda em curso mostram que, enquanto milhões de trabalhadoras e trabalhadores em todo o mundo ficaram sem emprego e/ou sem moradia, os bancos foram resgatados pelos governos dos seus respectivos países.
A injeção de milhões e milhões de euros pelo Banco de Espanha (o equivalente ao nosso Banco Central) para salvar as entidades financeiras na crise de 2008 foi um exemplo. Dez anos depois, o mesmo banco afirmou só haver recuperado 10% desse total. Nessa mesma direção, em 2020 o Banco Central do Brasil disponibilizou 1,2 trilhão de reais para combater os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre o sistema financeiro. Criou também o Fundo Garantidor de Operações (FGO), para injetar recursos públicos e garantir riscos referentes às operações de crédito dos bancos. Tudo isso para salvar os banqueiros, enquanto o desemprego, o subemprego e a pauperização da classe trabalhadora só se acentuam.
Mas, além da “tirania do dinheiro”, Milton Santos também se refere à “tirania da informação”, que, segundo ele, juntamente com a primeira constitui o suporte fundamental do capitalismo globalizado. Para Santos, as informações conhecidas majoritariamente pela humanidade estão manipuladas e, em lugar de explicar, confundem; o que, conforme ressalta, é extremamente prejudicial, já que informação é fundamental. “Falsificam-se os eventos, já que não é propriamente o fato o que a mídia nos dá, mas uma interpretação”, critica.
Nunca, como hoje, essa “tirania da informação” esteve tão vigente, e eficaz. Nesta dita “sociedade da informação”, apesar do desenvolvimento desenfreado das tecnologias da informação e comunicação, assim como do “bombardeio” de comunicação ao qual estamos expostas e expostos, as informações realmente úteis não alcançam a todas as pessoas, dada a concentração cada vez mais escandalosa da propriedade dos meios de difusão. E isso, como sabemos, favorece o controle do fluxo informacional, e, sobretudo, do tipo de conteúdo que circula majoritariamente. Isso vemos diariamente no mundo e no Brasil.
Aqui em nosso país, por exemplo, na ocasião em que se colocava em pauta a Reforma Trabalhista, quase nunca eram expostas opiniões que se opunham a essa iniciativa. Elas eram ofuscadas, invisibilizadas, ou mesmo excluídas. Houve um “bombardeio informativo” com discursos favoráveis à reforma, sobretudo através dos/das “especialistas” que não se cansavam de repetir “os benefícios” daquela iniciativa. As opiniões contrárias não apareciam nesses “debates”, a ponto de muitas/muitos trabalhadoras/trabalhadores terem apoiado a redução de seus direitos arduamente conquistados. Hoje, porém, vemos como a classe trabalhadora se vê profundamente prejudicada com os efeitos dessa que foi uma das maiores usurpações de direito dos últimos anos.
Mas nem tudo é negativo na obra Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Nela, Milton Santos ressalta a possibilidade de reversão dessa engrenagem, classificada por ele como “globalização perversa”, apresentada a nós como “fábula”. Ele afirma que esse modelo pode ser superado e ressalta um conjunto de fatores que podem levar a essa superação, a exemplo das relações instáveis de trabalho, do crescente desemprego e da queda do salário médio, que contrastam com a ampliação dos bens e serviços.
Apesar de haver sido publicado há 22 anos, esse livro de Milton Santos parece estar descrevendo os nossos dias atuais. Basta vermos a deteriorização dos salários, inclusive das classes médias; os índices de desemprego; a informalização do trabalho e a chamada “uberização”. Todos esses fatores nos têm levado a exatamente esse cenário descrito pelo geógrafo, já que, enquanto tudo isso acontece, não paramos de ver como estão sendo ampliadas as ofertas de produtos e serviços pelo mercado. A cada dia a maioria da população trabalhadora vê sua condição de existência se deteriorar, sua capacidade de consumir bens (inclusive essenciais) cada vez menor.
Quando acompanhamos os balanços apresentados, vemos nitidamente esse cenário: o empobrecimento ainda maior dos setores mais pobres das sociedades e, pelo contrário, o aumento da riqueza dos mais endinheirados, que formam “um punhado de gente”. Por exemplo, estudo da Oxfam, divulgado no início deste ano de 2022, mostra que a pandemia da Covid-19 adicionou aos bilionários mais 5 trilhões de dólares às suas fortunas, enquanto empurrou milhões de pessoa à condição de pobreza.
De acordo com Milton Santos, nesse livro, o empobrecimento torna o acesso a bens e serviços quase impossível, e, inclusive, o próprio consumo corriqueiro vai se tornando inacessível a uma importante fração da sociedade, o que se configura em uma contradição entre aquilo que a publicidade mostra e o que a vida real oferece.
Entretanto, todo esse cenário de incertezas e instabilidades é, na visão de Milton Santos, favorável a outras construções históricas. Conforme o teórico, podemos delinear outros futuros, com arranjos e resultados diferentes, através de articulações capazes de superar esses obstáculos, “permitindo contrariar a força das estruturas dominantes”. Isto porque, segundo ele, essas crises pelas quais passamos – não somente no Brasil, mas em diferentes países e continentes – denotam não apenas a crueldade da globalização, mas também sua fraqueza.
Milton Santos defende a construção de um modelo (político, econômico e social) diferente, pautado na solidariedade, no qual a humanidade possa reconhecer-se como um todo, numa combinação entre técnica e política que nos faça superar a supervalorização do dinheiro e das coisas. Ele diz que a desilusão produzida pelas demandas não satisfeitas pode nos levar a outros caminhos.
Segundo ele, essas dificuldades pelas quais passa a maior parte da população quiçá funcione como despertadoras para uma reação. Ressalta que, em um primeiro, devido à falta de uma visão mais ampla da situação geral, provocada principalmente pelo ofuscamento causado pela publicidade/propaganda, que faz escapar aos pobres o entendimento sistêmico do mundo, nos cheguem apenas fragmentos deste mundo que funcionem como “uma semente” plantada para o passo seguinte, que seria o florescimento da inconformidade. E, “talvez, da rebeldia”.
As inúmeras iniciativas coletivas de combate à pobreza, através da promoção do desenvolvimento local, com base na economia solidária (cooperativas, sistemas locais de trocas, banco solidário, entre outras) são exemplos dessa “rebeldia” que, na medida em que possam ser ampliadas – e isso se consegue com conscientização e organização –, podem ser o começo do processo de reversão desse individualismo cruel e devastador que impera.
Na visão de Santos – com a qual compartilho –, podemos redirecionar nossas ações à construção de um mundo mais humanizado. “Basta que complementem as duas grandes mutações em gestações: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana”, ressalta o geógrafo. Ele nos fala da possibilidade de transformarmos a nossa existência em algo mais significativo. Santos nos propõe uma reinvenção do mundo, a partir da qual possamos construir uma “solidariedade orgânica”, constituída por relações horizontais, recíprocas, baseadas em ações exercidas em um território comum, indissociável, contínuo, a partir de valores que viabilizem a existência coletiva de forma integrada.
Por essas e outras questões considero imprescindíveis aos dias atuais as reflexões contidas nesse livro, dado que partem da análise das estruturas que constituem o mundo no qual vivemos, forjadas a partir de fundamentos que têm transformado o Planeta cada vez mais inóspito para a maioria de nós e de outros seres vivos. Por isso, conhecer, compreender e, sobretudo, colocar em prática a “rebeldia” sobre a qual nos fala Milton Santos nos ajudaria no processo árduo e demorado de transformações que devemos implementar, sob pena de sacrificarmos a nossa própria existência como espécie.
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A atualidade do pensamento e da obra de Milton Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU