30 Mai 2022
Após mais de três séculos de dependência do patriarcado de Moscou, a Igreja Ortodoxa Ucraniana pró-Rússia também decidiu cortar suas relações com o patriarcado russo.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 29-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um tapa sem precedentes que Kirill tentou de todas as maneiras evitar, mas que seu apoio aberto à guerra de agressão tornou inevitável. Era apenas uma questão de escolher o momento.
Em 27 de maio, a assembleia de clérigos e leigos das 53 dioceses da Ucrânia aprovou uma resolução de dez pontos que põe fim às residuais relações de dependência.
Abrindo o encontro, o Metropolita Onufrio reivindicou o trabalho pastoral coerente de sua Igreja desde a primeira assembleia dos bispos, após a independência em 1992, que entrou para a história como a assembleia de Khasrkov. As hostilidades bélicas iniciadas pela Rússia em 24 de fevereiro passado colocaram a Igreja em uma posição insustentável.
“Não perder a nossa humanidade e sua imagem de Deus enquanto o mal invadiu nossos corações e não colocar em risco a nossa fé; estas são as tarefas que temos que enfrentar hoje."
Onufrio reivindica a sua condenação imediata da guerra, os 13.000 refugiados acolhidos durante o conflito (dos 6 milhões que fugiram do país), os 20 veículos doados ao exército nacional, as 190 toneladas de ajudas. Apesar disso, a Igreja pró-Rússia tem estado no centro de inúmeras suspeitas devido aos seus laços canônicos com Moscou. Alguns padres foram acusados de colaboração com os serviços secretos russos, dezenas de decisões administrativas que confiscaram igrejas e transferiram comunidades para obedecer à Igreja autocéfala, pelo menos 15 casos de confrontos físicos com os fiéis.
Até o perigo mais grave: o projeto de lei 7204, apresentado em 22 de março, que proibiria as atividades da Igreja pró-Rússia em todo o território e nacionalizaria todos os seus bens, incluindo os grandes mosteiros das grutas de Kiev (não de propriedades, mas administrados), de Potchaev e de Svyatogorsk. Acabar com a submissão, pacificar o povo e discutir o futuro comum foram os pedidos do metropolita à assembleia.
A resolução da assembleia conciliar desenvolve-se em dez pontos:
- condenação da guerra;
- convite para negociações entre a Ucrânia e a Rússia;
- "Expressamos nosso desacordo com a posição do Patriarca Kirill de Moscou e de toda a Rússia sobre a guerra na Ucrânia";
- alterações dos estatutos internos;
- apreciação da condução dos eventos pela Igreja;
- pedido do rito do sagrado crisma (próprio das Igrejas autocéfalas);
- delegação de assuntos sinodais aos bispos durante a lei marcial;
- solicitação para a abertura das paróquias ucranianas nos locais de residência de refugiados no exterior (6 milhões);
- “Ciente de sua responsabilidade diante de Deus, a assembleia conciliar expressa seu profundo pesar pela falta de unidade da ortodoxia ucraniana. A assembleia considera a presença do cisma como uma ferida profunda e dolorosa no corpo da Igreja. Consideramos lamentável que as últimas decisões do Patriarca de Constantinopla na Ucrânia que levaram à criação da Igreja Ortodoxa da Ucrânia ("Igreja Ortodoxa Ucraniana" é o título da Igreja pró-Rússia) só tenham aumentado a confusão, provocando confrontos físicos. Mas mesmo em circunstâncias tão críticas, a assembleia conciliar não perde a esperança de renovar o diálogo”. Para que isso aconteça, pede que cesse o confisco de igrejas e as transferências forçadas de paróquias, que reconheça que o estatuto da Igreja pró-Rússia tem um grau de autonomia superior ao da Igreja autocéfala, que inicie um debate pelo reconhecimento da canonicidade dos hierarcas e padres da Igreja autocéfala;
- trabalhar pela comunicação fraterna, pelo fim da guerra e pela reconciliação com os inimigos.
Agora, o campo do confronto é inteiramente interno à ortodoxia ucraniana. A Igreja pró-Rússia não pode renunciar ao diálogo com a Igreja autocéfala do Metropolita Epifânio, mas esta última só terá plena legitimidade a partir de um confronto positivo com a contraparte.
Reabre-se uma possibilidade surpreendente, cultivada como um sonho por gerações de crentes: a de um único patriarcado de Kiev capaz não apenas de unificar as comunidades ortodoxas, mas também de compreender as comunidades greco-católicas.
A unidade de rito, língua e história permitiria uma jurisdição dupla e convivial: os ortodoxos em comunhão com Constantinopla e os católicos em comunhão com Roma. O que foi o centro do cisma que está fragmentando as Igrejas ortodoxas e colocando em dificuldade o diálogo ecumênico entre as Igrejas cristãs, poderia se tornar o início de uma experimentação surpreendente: uma dupla obediência eclesial na fronteira entre Oriente e Ocidente, a superação completa do temido "Uniatismo".
O cristianismo, ferido por uma justificação insensata da guerra, poderia inventar um gesto profético de extraordinária profundidade para a harmonia futura no continente. A capacidade visionária do Papa Francisco e seu excelente relacionamento com Bartolomeu de Constantinopla são necessários para a empreitada. As paixões atuais ainda não tornaram isso real, mas a possibilidade está aberta.
Mais difícil será prever o que pode acontecer em Moscou. É difícil imaginar que Kirill possa sobreviver à perda da Ucrânia, apesar do objetivo visível de unir os territórios de Donbass, assim como os da Crimeia.
Seria o ocaso definitivo não só de Russkiy mir (mundo russo), mas também da pretensão hegemônica de Moscou sobre a Ortodoxia e da hipótese da "terceira Roma".
Tudo isso não invalidaria o papel relevante de Moscou na ortodoxia das próximas décadas, nem sua tarefa decisiva de apoiar a unidade da Rússia diante do perigo de uma desastrosa fragmentação.
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Ortodoxia Ucraniana: longe de Moscou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU