24 Mai 2022
Os Evangelhos, à primeira vista, apresentam os fariseus em conflito com Jesus. Mas, superando os clichês, também descobrimos convergências com Ele.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 22-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se recorrermos ao dicionário de sinônimos e antônimos [em italiano] e procurarmos a palavra “fariseu”, lemos: “falso, hipócrita, insincero”. E se, por curiosidade, passarmos para “jesuíta/jesuítico”, repete-se esta sinonímia: “hipócrita, simulador, insincero, duplo, sorrateiro”.
Duas instituições religiosas, separadas entre si por séculos, unem-se na sombra da duplicidade e da simulação, tendo como “contrário” a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a franqueza, a autenticidade. O dicionário obviamente deve registrar um estereótipo pregado na mente de uma sociedade, mesmo que, como muitas vezes ocorra, a realidade seja muito mais complexa e até alternativa ao lugar-comum.
Pois bem, para um desses dois sujeitos, o que desmantela as superestruturas semânticas dominantes ou, melhor, o que as solapa desde os seus alicerces, talvez com alguns excessos “ecumênicos”, são as pesquisas realizadas por uma equipe de estudiosos judeus, protestantes e católicos reunidos em Roma em maio de 2019 em um congresso dedicado justamente a Jesus e aos fariseus, com o selo de um discurso do Papa Francisco.
Agora, estão disponíveis os seus anais, que incluem nada menos do que 25 conferências multidisciplinares que partem naturalmente da própria interpretação do próprio vocábulo “fariseu”, presente nada menos do que 98 vezes no Novo Testamento e assumido por um irrepreensível São Paulo sem hesitação na sua “carteira de identidade” ideal oferecida aos filipenses: “Circuncidado no oitavo dia, sou israelita de nascimento, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus. Quanto à lei judaica, fariseu” (3,5).
O valor do termo é discutido, embora prevaleça a acepção de “separados”, mas o interesse maior via à sua real relação com Jesus.
De fato, há um paradoxo: por um lado, os Evangelhos à primeira vista apresentam uma relação dialética, para não dizer conflituosa; por outro lado, se as duas concepções forem aproximadas, a jesuana e a farisaica, descobrem-se convergências surpreendentes.
Nessa perspectiva, o volume abre um leque de ensaios muito interessantes que, por exemplo, mostram como Jesus está mais em sintonia com eles do que com a outra corrente, a aristocrático-sacerdotal-conservadora dos saduceus. Entre outras coisas, descobre-se no Evangelho de João a sugestiva presença de uma alta personalidade farisaica como Nicodemos.
Variações de juízo são registradas dentro da obra dupla de Lucas (Evangelho-Atos dos Apóstolos). Contextualizam-se também as páginas mais duras (Mateus 23); amplia-se o horizonte dentro do qual o fenômeno do farisaísmo está inserido.
Assim, remonta-se ao judaísmo rabínico anterior, contemporâneo e subsequente; avança-se na sequência dos séculos posteriores, começando pelos Padres da Igreja e pelas heresiologias cristãs com a respectiva apologética, para chegar até Lutero e Calvino.
Mas os capítulos que mais interessarão aos nossos leitores são outros, como aquele que põe em cena a arte figurativa, um terreno inexplorado que inclui mosaicos, códices em pergaminho, impressos, pinturas, desenhos, segundo uma iconografia com vários sujeitos (Nicodemos, a célebre parábola do fariseu e do publicano de Lc 18,10-14, a cena da adúltera e assim por diante). Ou o ensaio sobre a famosa Paixão de Oberammergau, uma representação dramática em vigor há mais de 350 anos. Ou ainda o ensaio sobre os fariseus na filmografia: a lista é longa, mas se impõe o tríptico do “Evangelho segundo Mateus” de Pasolini, do “Jesus de Nazaré” de Zeffirelli e do “Jésus” de Montréal de Arcand.
Por consonância, mesmo que por razões de espaço apenas no apêndice, colocamos a preciosa reimpressão das “Instituições do Antigo Testamento”, de Roland de Vaux, um verdadeiro “clássico”, apesar da datação original (1957) e das necessárias atualizações.
O autor, nascido em Paris em 1903, frade dominicano em 1929, falecido em 1971, depois de uma vida passada em Israel e na Jordânia, foi uma autoridade no campo da arqueologia (são conhecidas as suas escavações no sítio de Qumran, de cuja comunidade judaica ele publicou também alguns dos manuscritos descobertos) e da história do Israel bíblico, revelando a sua sensibilidade cultural como graduado em Letras pela Sorbonne e como diretor da École Biblique, uma importante entidade acadêmica francesa de Jerusalém.
É difícil delinear a arquitetura desse seu estudo, considerado por muitos como a sua obra-prima, fruto de décadas de pesquisas históricas, arqueológicas, epigráficas e literárias. A típica clarté francesa, porém, permite identificar um mapa de base que procede a partir do pano de fundo nômade-tribal de Israel, cuja marca permaneceria mesmo quando o povo se estabelecesse na terra de Canaã, organizando-se em estruturas políticas, sociais e religiosas. Elas configuram os pontos cardeais do mapa: as instituições familiares, as civis, as militares e as religiosas. A estas últimas é reservado o espaço mais amplo, considerando a documentação bíblica disponível.
De Vaux nos leva a visitar idealmente os antigos santuários semíticos e hebraicos para depois nos guiar até a área do templo jerosolimitano, onde o culto é centralizado. Paramos em frente ao altar e aos sacrifícios rituais, acompanhando a obra litúrgica de sacerdotes e levitas, e participamos das marcações dos tempos sagrados (festas e sábados). Uma experiência extraordinária, quase ao vivo, que vai muito além da árida lista que fomos obrigados a propor nesta indicação.
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Os fariseus não fazem tão mal assim. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU