Não somente os adolescentes estão sendo acometidos, mas as crianças também estão mais suscetíveis a este tipo de problema
A ideia de que crianças estão alheias aos constrangimentos sociais e psicológicos do mundo concreto e que, por isso, estão imunes às questões da saúde mental é um equívoco. E pensar em todas essas nuances é algo que preocupa não somente pais e cuidadores, mas também profissionais que lidam com a situação, cada vez mais associada a um desafio de saúde pública.
“A saúde mental de crianças e adolescentes tem estado no centro do debate sobre a saúde nas fases iniciais da vida porque temos observado sofrimento importante nesses grupos etários”, aponta a professora a pesquisadora Joviana Avanci, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O problema vai muito além de aspectos comportamentais, como, por exemplo, hiperatividade e, às vezes, agressividade ou introspecção. Portanto, construir uma rede de apoio e atendimento amplos é fundamental. “Também é muito relevante a falta de assistência dos serviços de saúde e da escola às pessoas que estão em risco e já emitem sinais de suicídio, o que exigiria atenção imediata e especializada. A família fica muito desamparada e não sabe como nem onde procurar ajuda e atendimento”, frisa.
Há pontos que são bastante particulares do mundo que vivemos atualmente, como a ode ao “sucesso” e a rotina pesada do dia a dia que, de maneira mais ou menos consciente, acabam pautando as relações familiares. “A exigência cada vez mais exacerbada por sucesso, o distanciamento afetivo e a falta de intimidade das famílias com seus filhos, além da falta de tempo para atividades lúdicas e fora das telas são alguns dos fatores”, aponta a entrevistada.
Joviana Avanci (Foto: Arquivo pessoal)
Joviana Avanci é psicóloga. Realizou pós-doutorado no Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde (CLAVES/ENSP/Fundação Oswaldo Cruz), possui doutorado-sanduíche pela Fundação Oswaldo Cruz/IFF/Cambridge University e mestrado em Saúde da Mulher e da Criança pelo Instituto Fernandes Figueira/Fundação Oswaldo Cruz.
Atualmente é pesquisadora do CLAVES/Fundação Oswaldo Cruz e líder do Grupo de Pesquisa Vulnerabilidade e desenvolvimento infanto-juvenil e integra o Grupo de Pesquisa Violência e Saúde. Desenvolve atividades de cooperação internacional na área de formação e pesquisa. Tem se dedicado à investigação da violência, principalmente o seu impacto na saúde mental de crianças e adolescentes.
IHU – Em 2021, a Sociedade Brasileira de Pediatria – SBP incluiu o tema da saúde mental entre crianças e jovens no Tratado de Pediatria e, no mesmo ano, o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef também publicou relatório sobre o tema. O que isso indica? A saúde mental de crianças e jovens está se degradando ou esse é um tema que vinha sendo negligenciado?
Joviana Avanci – A saúde mental de crianças e adolescentes têm estado no centro do debate sobre a saúde nas fases iniciais da vida porque temos observado sofrimento importante nesses grupos etários. O avanço no conhecimento sobre o tema, aliado à crescente observação de diversos problemas de saúde mental, que vão desde depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático até os problemas mais externalizantes, como a agressividade, impactam na saúde geral da criança, do adolescente e sua família. Interferem na relação social, no desempenho escolar e têm importantes manifestações físicas. A inclusão desse tema entre os profissionais que atendem é uma estratégia de cuidado e chama atenção para a intervenção cada vez mais cedo a fim de evitar a continuidade ou agravamento do problema em outras etapas da vida.
IHU – A senhora atuou na pesquisa “Violência autoprovocada na infância e na adolescência”. O que mais lhe impactou nesse estudo e que relação podemos estabelecer com a degradação da saúde mental entre crianças e jovens?
Joviana Avanci – Dentre tantos achados, chama atenção o sofrimento do adolescente e sua família, o sentimento de desamparo afetivo durante a vida, as violências vividas em casa (física, psicológica e sexual) e a recorrência de tentativas e suicídio em gerações anteriores.
Também é muito relevante a falta de assistência dos serviços de saúde e da escola às pessoas que estão em risco e já emitem sinais de suicídio, o que exigiria atenção imediata e especializada. A família fica muito desamparada e não sabe como nem onde procurar ajuda e atendimento. Outro ponto são as famílias que perderam seus filhos para o suicídio. São marcas que impactam muito e há um temor de que um novo incidente semelhante possa vir a acontecer com outro filho. Essas famílias também precisariam ser ouvidas e atendidas.
IHU – Quando afirmamos que saúde mental de jovens e crianças requer atenção, estamos falando do que especificamente? Que tipo de transtornos acometem essas pessoas?
Joviana Avanci – A ansiedade e depressão são os transtornos que mais afetam estas fases da vida, além do transtorno de estresse pós-traumático, a hiperatividade, a desatenção ou comportamentos destrutivos ou desafiadores. O suicídio e a autolesão costumam estar associados a problemas de saúde mental como a depressão. Vale ressaltar que alguns comportamentos e sentimentos característicos dos transtornos são típicos da fase da infância e adolescência. O diagnóstico clínico requer uma avaliação especializada e, principalmente, a constatação de um prejuízo importante no funcionamento social da criança/adolescente, interferindo nas relações familiares, com amigos, na escola e na competência social de maneira geral.
IHU – O isolamento social, consequência da pandemia, impactou a saúde mental de todos, o que faz muitos atribuírem a isso a piora da saúde mental. Mas, qual a raiz desse problema, para além da pandemia, no caso de crianças e jovens?
Joviana Avanci – Sem dúvida que a restrição do contato com as pessoas interfere na saúde mental de todos, mas não é determinante. Observamos que a pandemia agravou casos que já manifestavam problemas e já exigiam atenção e cuidado. A maior parte dos problemas de saúde mental tem causas multifatoriais, ou seja, envolve fatores biológicos, psicológicos, familiares e sociais.
Em geral, observa-se um gatilho que ocasiona a deflagração de um problema, como o suicídio. Violências em casa, na escola e na comunidade; desentendimentos nas relações entre namorados, baixa autoestima, bullying e cyberbullying, perdas por mortes, doenças e exposição a situações de violência nas redes sociais virtuais são alguns dos fatores que podem ocasionar problemas na saúde mental de crianças e adolescentes.
IHU – Em que medida nossos modos de vida contemporâneos têm impactado na saúde de crianças e jovens?
Joviana Avanci – A vida contemporânea pode trazer vários prejuízos, mas também atuar de forma protetiva à saúde mental. A exigência cada vez mais exacerbada por sucesso, o distanciamento afetivo e a falta de intimidade das famílias com seus filhos, além da falta de tempo para atividades lúdicas e fora das telas são alguns dos fatores.
IHU – Quem são as crianças e jovens que hoje mais sofrem com problemas de saúde mental?
Joviana Avanci – Tenho muita preocupação em construir um perfil porque precisamos olhar para questões peculiares de cada um. Em geral, as meninas são mais vulneráveis para os transtornos de ansiedade e depressão, e os meninos para os problemas de conduta e o suicídio consumado. A idade mais crítica costuma ser a partir dos 14 anos. Há muito debate sobre questões étnico-raciais e pobreza, e isso varia de acordo com a natureza de cada problema.
Contudo, determinantes sociais são cada vez mais evidenciados como questões que desencadeiam os problemas. Além disso, crianças mais impulsivas, com dificuldade para regular emoções ou aquelas com retraimento exacerbado também constituem um perfil que pode contribuir aos problemas de saúde mental.
IHU – Outro dado que assusta é o de que cerca de 46 adolescentes morrem por suicídio a cada ano, uma das cinco principais causas de morte nessa faixa etária. Que fatores globais podem levar a isso? E como o Brasil se situa nesse cenário?
Joviana Avanci – Apesar das estatísticas alarmantes, nas últimas décadas o Brasil não estava no topo das taxas de suicídio, em comparação a outros países do mundo. Contudo, nos últimos anos, as taxas do país têm estagnado ou crescido, ao contrário de outros países que conseguiram diminuir o problema. Além dos determinantes sociais e os outros fatores citados anteriormente, a fragilidade dos serviços de saúde e da escola em intervir e atuar preventivamente junto às crianças, adolescentes e suas famílias colabora para a naturalização e o agravamento de problemas de saúde mental. É possível fazer prevenção em saúde mental desde cedo.
IHU – Seja em qual for a faixa etária, o tratamento de saúde mental ainda é um tabu. Por que e como se pode romper com isso?
Joviana Avanci – Ter problemas de saúde mental muitas vezes é visto como fraqueza pessoal ou como fracasso da família. É fundamental que todos que lidam com crianças e adolescentes possam atuar e apoiá-los a lidar com o prejuízo ou sofrimento relacionado a muitos problemas, que, muitas vezes, se arrastam por muito tempo, agravando ainda mais o quadro.
Ouvir e não menosprezar sinais de sofrimento é fundamental para acolher as pessoas. Possibilitar que fale o que sinta sem julgamentos, estigmas ou preconceitos pode aliviar a dor. E procurar a ajuda especializada sempre que necessário. Não tratar um problema de saúde mental, que se apresenta de forma recorrente e com impacto no dia a dia da pessoa, pode trazer prejuízos durante toda a vida.
IHU – No sistema público de saúde, há muitas queixas sobre demora nos atendimentos e poucas consultas ofertadas, especialmente de psicoterapia, o que torna os Centros de Apoio Psicossocial, os Caps, superlotados. Como podemos compreender a concepção dos Caps e de que forma se pode enfrentar seus gargalos?
Joviana Avanci – Este é um grande desafio da atenção em saúde mental no país. Há escassez de serviços e profissionais capacitados e especializados. As clínicas-escolas de universidades têm ocupado um lugar importante à oferta de atendimento à população que não pode aguardar a gigantesca fila de espera nos serviços públicos nem custear um atendimento em consultório privado.
Os governos municipais, estaduais e federais precisam olhar com atenção para a gravidade desse problema que afeta a saúde brasileira em todas as faixas etárias, da infância à velhice, e fortalecer os serviços, capacitar os profissionais, promover formação continuada e supervisão dos casos, discuti-los, definir protocolos e fluxos locais.
IHU – Por outro lado, no sistema privado, a saúde mental não tem maior espaço. Muitos planos ainda limitam consultas e tratamentos. O que isso representa?
Joviana Avanci – Representa a escassez ainda maior de oferta de atendimento, que costuma ter custo alto, frente às condições de renda da maior parte da população. Todo esse cenário deixa à deriva uma parcela grande de pessoas que precisam de psicoterapia ou tratamento psiquiátrico, ocasionando muito sofrimento.
IHU – Qual o custo social do adoecimento nos casos em que a saúde mental é abalada?
Joviana Avanci – O custo da incapacidade, de doenças, do sofrimento emocional e da morte. No caso de crianças e adolescentes, o custo social afeta toda a família, e pode ser irreversível se não cuidado.
IHU – Que caminhos famílias, sociedade e poder público devem percorrer para preservar a saúde de crianças e jovens?
Joviana Avanci – Acolher, ouvir e procurar ajuda quando perceber que algo não está bem. Não menosprezar sinais de sofrimento emocional nem criticar. A família, na maioria das vezes, precisa também ser ouvida e cuidada. Viver com saúde mental não significa não ter problemas ou sentimentos desagradáveis, mas conseguir falar o que sente sem que isso te faça se sentir desconfortável ou mal. Poder regular e compartilhar o que sente tem sido apontado como uma estratégia eficaz de prevenção de problemas de saúde mental.