Entre abstrações e a “boa ética”. Artigo de Paolo Benanti

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28 Março 2022

 

Antes de julgar, é preciso compreender. Muitas vezes, o erro não nasce a partir da aplicação dos princípios, mas da incapacidade de “ler dentro” – de intus legere – o caso. De fato, uma boa ética não pode prescindir de uma boa hermenêutica.

 

A opinião é de Paolo Benanti, teólogo e frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida.

 

O artigo foi publicado em Avvenire, 24-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O “lançamento de anão”, ou dwarf tossing, é um passatempo australiano bizarro, para dizer o mínimo. Essa prática que tem gerado discussão no mundo todo consiste em fazer com que um homem de baixa estatura vista macacão, capacete e arnês, para depois ser lançado por meio das alças colocadas em suas roupas.

 

Cruel estigmatização de algumas pessoas ou disciplina esportiva? Essa atividade pode ser entendida como uma atração de bar, na qual uma ou mais pessoas com nanismo, vestidas com trajes especiais de velcro, são arremessadas na direção de colchões também cobertos com velcro, com o objetivo de acertar um alvo.

 

Os fãs defendem a liberdade da pessoa com nanismo que consente com a prática. Os críticos defendem o dever de proteger a pessoa que se torna vulnerável pela sua condição. E há também quem conteste a palavra “anão” por ser depreciativa.

 

Trata-se de um esporte lícito em virtude do consentimento do “lançado” ou é mais uma ofensa à dignidade de pessoas que não são estatisticamente altas como as demais? O consentimento do “lançado” pode justificar a atividade, lúdica ou esportiva, do lançador?

 

Uma primeira resposta, eu compartilho com Armando Massarenti: “Um libertário, como este que escreve, não pode deixar de ficar perturbado. Gostaria que essa prática não existisse, mas como justificar a proibição? Gostaria que se fizesse um uso melhor da própria liberdade, mas também não gostaria de culpar quem se encontra em um horizonte de escolhas incomparáveis com as próprias. Eu havia começado com a ideia de escrever algo divertido. Agora só posso me envergonhar se alguém realmente riu ao ler” (“Il lancio del nano e altri esercizi di filosofia minima”, Milão: Ugo Guanda Editore, 2009).

 

Saber o quanto as palavras podem ferir ou dizer o quanto o consentimento livre pode justificar atos lesivos à pessoa, mesmo diante de graves condições de necessidade dela, não é uma questão fácil de se responder. Certamente, não se pode fazer isso em um tuíte, em um slogan ou em uma pergunta seca.

 

Quem lê pode achar que o “lançamento de anão” também é uma ótima metáfora para se falar de outras questões contemporâneas. A ética nunca é pura teoria, mas uma disciplina que se interroga a partir da realidade e dos casos concretos.

 

Ao querermos levar a sério as questões éticas, porém, precisamos nos expor; e, ao nos decidirmos tentando fazer o bem, nem sempre ficamos incólumes. “O trágico da ação”, como define o filósofo Paul Ricoeur, se encontra quando as regras estão em conflito entre si e não nos permitem escolher, como ocorre na tragédia de Antígona, em que a lei civil entra em conflito com a lei dos laços familiares e da religião.

 

Antes de julgar, é preciso compreender. Muitas vezes, o erro não nasce a partir da aplicação dos princípios, mas da incapacidade de “ler dentro” – de intus legere – o caso. De fato, uma boa ética não pode prescindir de uma boa hermenêutica.

 

Quantos “lançamentos de anões” vemos hoje ao ler os jornais...

 

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