21 Março 2022
"A invocação artificial da 'complexidade' contra a propaganda estéril de quem gostaria de distinguir sem demora a democracia de outras formas autoritárias de governo, a equiparação entre democracia estadunidense e autocracia putiniana, a crítica à OTAN e à Europa que acaba por atenuar de fato as responsabilidades criminais da Rússia de Putin e de seu regime em ter provocado esta guerra, em suma, toda a retórica variegada da equidistância revela, na realidade, as profundas incrustações mnésicas da esquerda ideológica e populista que a impedem de aderir plenamente à cultura da democracia", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 19-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguns dos maiores especialistas em geopolítica parecem concordar em condenar a guerra desencadeada por Putin e em considerar a resistência ucraniana sem esperança. A desproporção das forças no campo não deixaria dúvidas sobre o destino do conflito.
Portanto, é melhor se render logo e deixar o campo para a diplomacia do que prolongar a carnificina (como se escapasse o nexo evidente entre o destino das negociações e a importância da resistência militar ucraniana). Segue-se que para alguns deles Zelensky seria culpado (tanto quanto Putin?) de expor seu povo a uma carnificina sem sentido em vez de se render aceitando as condições de paz impostas pelo Kremlin.
Esse raciocínio também é compartilhado por uma determinada esquerda em nome do pacifismo: quanto mais cedo uma guerra é interrompida, mais cedo as mortes param. Pena, porém, que o "nem nem" não possa ser uma recusa para tomar o partido da OTAN ou da Rússia porque a Ucrânia hoje não coincide com a OTAN, mas com as vicissitudes de um povo que reivindica decidida e legitimamente o seu direito a não ser subjugado. No entanto, o discurso pedindo o fim imediato da guerra não parece ter falhas.
Mas a falha existe e é algo que pode escapar até das análises geopolíticas mais sutis. Na psicanálise é chamada de força do desejo e, para além da expressão talvez um tanto retórica, diz respeito a uma dimensão de potência que não é primeiramente militar.
Temos vários retratos, até míticos. Um dos mais conhecidos é aquele bíblico de Davi que desafia o gigante filisteu Golias. Lembramo-nos das palavras ameaçadoras com que se dirige arrogantemente ao frágil pastor: "Vem a mim, e eu darei a tua carne às aves do céu e às bestas do campo”. Não é difícil perceber aqui a proximidade de seu jargão com a mais recente retórica putiniana. Mas Davi não recua, nem se deixa intimidar. E não será apenas a escolha tática da funda que irá determinar sua vitória.
Há sempre um fator adicional em toda luta que vai além das capacidades militares e das artes estratégicas. Não porque estas não sejam necessárias para vencer ("nos deem armas, não conselhos!", Zelensky implora a seus aliados), mas a força de Davi está principalmente em sua fé nua, é verdadeiramente a força indomável de seu desejo. Isso é talvez o que Putin mais subestimou. É o que perpassa os indivíduos e os coletivos cada vez que a decisão de lutar não é sofrida, imposta, ajoelhada a uma causa alheia, mas brota de um profundo sentimento de justiça e rejeição ao abuso.
Essa força é o fator incalculável dessa guerra, a falha que desfaz os discursos mais lineares. Os rostos assustados dos jovens soldados russos feitos prisioneiros não só denunciam a inadequação militar do exército de Putin, mas também revelam a ferocidade fascista de seu regime: a mentira sistematicamente situada no lugar da verdade. Mas, como nós, ao contrário daqueles pobres soldados, bem sabemos, não se trata nem de um exercício, nem de uma operação especial para desnazificar um território fronteiriço, mas uma verdadeira guerra de invasão contra um Estado soberano e independente.
Esses garotos são vítimas do engano da ideologia, semelhante nisto àqueles das várias juventudes milicianas típicas de todos os regimes totalitários. Só que neste caso não temos nenhum traço de fanatismo, mas apenas de medo. A Rússia de Putin não é a União Soviética de Stalin. Esses garotos, no fundo, não só não têm a formação necessária para lutar no front, como nem sabem onde estão e pelo que estão lutando. A acusação que uma determinada esquerda faz a Zelensky de não se render deixa escapar este ponto elementar: todo um povo de homens e de mulheres se revolta com o poder de sua fé nua contra o opressor não porque segue fanaticamente seu líder, mas porque não quer renunciar às suas liberdades democráticas e à sua identidade. O verdadeiro terror de Putin não são, de fato, as armas da OTAN em sua fronteira, mas o pesadelo altamente contagioso da democracia.
Nesse sentido, a esquerda ideológica e populista - o que Manconi definiu recentemente como "esquerda autoritária" - que não se alinha abertamente ao lado da resistência do povo ucraniano, invocando a retórica do "nem nem", perde a oportunidade de mostrar a sua adesão à democracia contra toda forma de ditadura, incluindo aquela do povo que, como sabemos, é infelizmente uma matriz arquetípica, difícil de erradicar, da sua história.
A invocação artificial da "complexidade" contra a propaganda estéril de quem gostaria de distinguir sem demora a democracia de outras formas autoritárias de governo, a equiparação entre democracia estadunidense e autocracia putiniana, a crítica à OTAN e à Europa que acaba por atenuar de fato as responsabilidades criminais da Rússia de Putin e de seu regime em ter provocado esta guerra, em suma, toda a retórica variegada da equidistância revela, na realidade, as profundas incrustações mnésicas da esquerda ideológica e populista que a impedem de aderir plenamente à cultura da democracia.
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As incrustações dos nem nem. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU