21 Março 2022
Reentrar em nós mesmos, entrar no metaverso quaresmal: não tanto para fugir aos nossos deveres, mas para cumpri-los melhor, graças ao silêncio, ao recolhimento, à mortificação, à salmodia, à oração e à lectio divina.
A reflexão é de Vincenzo Bertolone, arcebispo emérito de Catanzaro-Squillace, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 20-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quaresma. Por quê? Podemos tentar vivê-la como algo extraordinário que o Senhor nos dá a Graça de experimentar hoje, apesar do isolamento da pandemia e da tragédia da guerra na Ucrânia?
Conversão? A vida nova – de lagarta a borboleta, caminho de santidade – dura toda a vida, nesta terra e na outra. A verdadeira conversão é alcançada quando não somos mais dominados pelo egoísmo e por desejos descontrolados, mas pelo verdadeiro amor divino libertador.
Uma segunda vida diferente está diante da vida ordinária. O mundo tecnológico também nos coloca diante de uma segunda vida, indicada também por uma palavra cheia de curiosidade, metaverso, um sistema para interconectar o mundo real e o virtual mediante um duplo de nós mesmos, de um avatar, como se diz.
O prefixo “meta” nos é caro no pensamento cristão e também na literatura. Estamos acostumados a termos como metafísica ou metamorfose. Se a metafísica se abre para algo diferente e além do físico, ou seja, daquilo que se vê e se toca, a metamorfose nos lembra a transformação a que Ovídio, por exemplo, submete alguns personagens da mitologia. Uma proposta de pensamento alternativo, portanto, um metapensamento ou, melhor, literalmente, uma conversão, isto é, uma mudança radical de perspectiva.
“Um dos Padres do Deserto dizia: assim como é impossível que um homem veja seu próprio rosto na água turva, assim também a alma, se não foi purificada de pensamentos estranhos, não pode rezar a Deus absorvida na contemplação” [1].
Mas hoje ainda se acredita na vocação sobrenatural do ser humano? Para que o caminho quaresmal seja para nós um límpido percurso de aproximação ao essencial, é necessário libertar a nossa existência de todos os empecilhos.
O que obstrui a nossa existência individual e social? Por acaso, não nos obstrui também a saturação, a overdose de informações (verdadeiras e/ou falsas) provenientes da sociedade da comunicação de massa e hipertecnológica? Não nos obstruem os muitos produtos de consumo?
Sêneca, falando de empecilhos que podem nos tornar intemperantes, já observava: “O gramático Dídimo escreveu quatro mil livros: eu já teria pena dele se ele tivesse se limitado a ler tanta quantidade de inutilidades”.
Muito mais do que a sabedoria filosófica, o Catecismo da Igreja Católica ensina que “a temperança é a virtude moral que modera a atração dos prazeres e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos nos limites da honestidade” (n. 1809).
Conhecemos hoje um tipo de cultura em que a verdade não importa. Mesmo que aparentemente se queira fazer aparecer toda a verdade, só importam a sensação e o espírito de calúnia e de destruição. Contra essa cultura, dizemos “não”.
Existem como que dois mundos: um aparentemente verdadeiro, o outro verdadeiramente verdadeiro; um mentiroso e construído artificialmente além do mundo verdadeiro; o outro, por sua vez, verdadeiro e bom, que é possível descobrir e conhecer.
O próprio caminho quaresmal tem a sua primeira etapa no “aquém” do ano litúrgico e da vida ordinária; a sua segunda etapa, no “além” dos instrumentos simbólicos e sacramentais que enchem de sentido a vida real. É possível se sentir bem aqui e lá, sem se dedicar ao mal.
Eis a necessidade na Quaresma de reentrar em nós mesmos, de nos apartarmos, de entrar no metaverso quaresmal, não tanto para fugir aos nossos deveres, mas para cumpri-los melhor, graças ao silêncio, ao recolhimento, à mortificação, à salmodia, à oração e à lectio divina.
1. Cf. “Detti dei Padri del deserto scelti e presentati da Thomas Merton”. Título original: “The Wisdom of the Desert”, Tea edizioni, 2003, p. XXIV.
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Quaresma, um metaverso cristão? Artigo de Vincenzo Bertolone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU