Poder público insiste pelo fechamento da casa de acolhimento criada por ativistas, mas não tem estrutura para abrigar mulheres vítimas de violência e seus dependentes, segundo especialistas. Estado também falha ao oferecer informações desatualizadas sobre os serviços.
A reportagem é de Caroline Guarnieri, Mariana Alves e Valentina Bressan, publicada por Matinal Jornalismo, 11-03-2022.
Helena* foi encaminhada a uma das casas-abrigo gerida pela prefeitura de Porto Alegre em um domingo, após sofrer uma tentativa de feminicídio e ser resgatada por uma vizinha. Ela já havia registrado vários boletins de ocorrência e medidas protetivas contra o ex-marido. Sofria há cerca de quatro anos agressões e abusos psicológicos diários. “Qualquer coisa era motivo de um tapa, um soco, um chute”, ela nos contou em uma manhã de março.
Durante todo o período que permaneceu no abrigo, ficou apenas com o mais jovem dos filhos, que estava com ela no momento da última agressão, apesar de insistir para abrigar os outros, todos menores de idade. Em vão. “Tentei de todas as formas trazer meus filhos para a casa. Briguei, xinguei Deus e o mundo lá dentro, não teve jeito”. Não conseguiu ver as crianças porque a casa também impõe restrições de saída e entrada. Em três meses, limite de tempo estabelecido pelo abrigo para a permanência de Helena, estava na rua de novo, sem ter aonde ir em segurança. Procurou então a Casa de Referência da Mulher – Mulheres Mirabal.
Localizada na zona norte, a Mirabal é uma casa de acolhimento para mulheres vítimas de violência e seus filhos. O espaço é gerido pelo Movimento de Mulheres Olga Benário, um grupo de ativismo feminista que, desde a criação da organização na sua primeira sede, no Centro Histórico, em 2016, sofre pressão do poder público para fechar as portas. A situação se agravou quando o Ministério Público decidiu engrossar o coro contra a casa-abrigo e, em dezembro de 2021, recomendou seu fechamento a despeito do preocupante cenário de violência contra as mulheres. Segundo dados de 2021 da Secretaria de Segurança Pública do RS, as ocorrências de estupro em todo o Estado cresceram 25% em relação a 2019. As demais agressões não tiveram aumento visível nas estatísticas, mas os órgãos e especialistas explicam que houve muita subnotificação durante os dois anos de pandemia.
Infográfico: Juan Ortiz | Reprodução | Matinal Jornalismo
Diferentemente das demais casas que acolhem vítimas de violência, a maioria mantida pelo poder público, a Mirabal foi criada a partir de um coletivo feminista e sob concepções mais flexíveis para o acolhimento. As mulheres não têm prazo para deixar a casa, podem viver com seus filhos e não é exigido que façam boletim de ocorrência, norma comum nas casas mantidas pelo poder público. Quando Helena estava prestes a deixar a casa-abrigo da prefeitura – onde morou por três meses e recebeu orientação profissional e psicológica que, segundo ela, não contribuíram para o seu caso – disse à funcionária que não sabia para onde ir e ouviu como resposta, em tom irônico, que ela deveria ir à Mirabal: “Lá é livre, tu podes fazer tudo o que quiser”. Na casa da zona norte, enfim, Helena conseguiu reunir todos os filhos, que até hoje vivem com ela no local.
O excesso de regras das casas públicas pode ser uma barreira para as mulheres romperem o ciclo de violência. Na Mirabal, a mulher em situação de violência pode chegar sem encaminhamento de órgãos públicos ou BO, e algumas até procuram a Casa por conta própria, sem passar por outras instâncias antes. Já boa parte das casas-abrigo públicas só recebe mulheres por meio das delegacias, quando registram o BO, ou por meio dos Centros de Referência da Mulher (CRM). Alguns espaços não aceitam que meninos maiores de 12 anos acompanhem as mães. Outras impõem um limite de tempo de permanência. “O que vemos é que não é tanto um problema de vagas, mas de restrição de demanda. Precisamos ter mais modelos de acolhimento, espaços em que as mulheres possam ter uma autonomia”, diz a advogada Renata Teixeira, da ONG Themis, que reconhece a importância da Mirabal no cenário de acolhimento às vítimas de violência doméstica.
A opinião é compartilhada pela professora e pesquisadora Luísa Habigzang. “Acho que é importante ter fluxos de trabalho, mas eu penso que isso não pode gerar uma rigidez que coloque a mulher em risco. Se ela precisa de um acolhimento imediato, é importante que ela receba esse acolhimento mesmo sem o BO. Porque o registro do BO é um momento difícil de tomada de decisão, às vezes ela precisa de uma conversa anterior.” A docente ainda questiona por que o poder público, em vez de recomendar o fechamento da Mirabal, não cria as condições para que a Casa tenha uma estrutura segura. “Eu acho que tem um desinvestimento muito importante em termos da garantia de direito das mulheres”.
Mas o modelo diferenciado da Mirabal não é visto com bons olhos pela prefeitura e pelo MP, que decidiram entrar em guerra com o movimento.
Uma das alegações do MP é que tanto a prefeitura quanto o governo gaúcho têm condições de acolher, sozinhos, as mulheres vítimas de violência doméstica sem precisar da Mirabal, posição contestada por Bianca Feijó, diretora do Departamento de Políticas para as Mulheres (DPM), vinculado à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. “Hoje a quantidade de vagas no município de Porto Alegre é insuficiente para atender a demanda, e, por óbvio, o fechamento da Casa [Mirabal] acaba agravando a situação”, disse.
Durante três semanas, o Matinal ouviu psicólogas, advogadas, ativistas e secretarias especializadas no combate à violência contra mulheres para investigar se de fato a rede pública de acolhimento é suficiente para atender os casos de violência na Capital. A opinião geral segue a mesma linha: não é só a falta de vagas nas casas de acolhimento, o problema é o engessamento do atual modelo, que cria barreiras para que as mulheres vítimas de violência sejam efetivamente atendidas. “Basta acompanhar os dados de violência para ver que não são suficientes. Além da maioria dos feminicídios ocorrerem quando a mulher não possuía medida protetiva contra o agressor, é ainda mais perverso observar que boa parte delas já tinha registros de ocorrência anteriores, já havia sido beneficiadas por medidas protetivas. O que isto significa? Que a rede não alcança a maioria das mulheres”, diz Renata Teixeira, advogada da ONG Themis.
Matinal analisou as informações passadas às mulheres em uma cartilha confeccionada pelo governo do RS, lançada em março de 2021. Descobrimos uma série de inconsistências nas informações, respostas desencontradas entre prefeitura e Estado e falhas graves no atendimento reportadas pelas mulheres acolhidas.
Entramos em contato com todas as 13 casas-abrigo no Rio Grande do Sul listadas na cartilha do governo para confirmar as condições atuais de funcionamento. Identificamos que, já em seu lançamento, a cartilha estava desatualizada. Em 2020, a casa-abrigo de Sapiranga fechou as portas, e o município passou a contratar vagas em uma instituição privada de abrigamento. O mesmo ocorreu com a Casa Lira, de Canoas, que teve suas atividades encerradas quando a gestão municipal passou a contratar vagas em instituição privada. Torres, presente na lista dos municípios com casa-abrigo do governo, nunca possuiu uma. Junto a outros municípios da comarca, Torres contrata vagas em uma casa-abrigo privada conveniada desde 2020.
A cartilha também traz outras inconsistências: assim como Torres, outras gestões municipais realizam a compra de vagas na rede privada de acolhimento, e não são citadas no documento. A Fundação La Salle, mantenedora do Centro de Abrigamento para Mulheres, informa que, além de Torres, outros 14 municípios realizam a compra de vagas na instituição privada.
Outra falha da cartilha é que a lista das instituições não diferencia as casas-abrigo, que oferecem abrigo de longa duração, das casas de acolhimento, chamadas também de casas de passagem, em que a mulher é acolhida temporariamente – normalmente, até conseguir uma medida protetiva. Embora estas casas, via de regra, não definam um tempo limite e avaliem caso a caso, em Vacaria, Três de Maio, Santa Rosa e Lajeado, são mantidos apenas locais de passagem, diferentemente do que cita o documento do Estado.
A listagem também não especifica a quantidade de casas-abrigo em cada cidade. Com informações da assessoria do Departamento de Políticas para as Mulheres (DPM), também apuramos a existência de uma nova casa que não constava na cartilha, inaugurada em Canela, na Serra Gaúcha, em outubro de 2021.
O DPM admitiu não manter contato direto com as casas. As atualizações periódicas na cartilha são feitas conforme as informações repassadas por cada CRM municipal, com autonomia para gerir os espaços por conta própria. Contudo, os CRMs só entram em contato com as casas quando há necessidade de buscar por uma vaga, o que causa o desencontro de informações. Dessa forma, não existe uma fonte unificada com todos os dados sobre abrigamento no Estado, a procura precisa ser feita em cada município, o que pode dificultar o acesso das vítimas. Para a deputada estadual Luciana Genro (PSOL), “o DPM é totalmente desestruturado, ele tem pouquíssima estrutura de gente para trabalhar e de recursos, e fica completamente à mercê das outras instâncias governamentais”.
Apesar do apoio de Bianca Feijó, diretora do DPM, à Mirabal, o Estado não a incluiu na cartilha. Porto Alegre conta com três casas-abrigo vinculadas ao poder público: a Casa Viva Maria, atuante desde 1992 e gerida pelo município, que tem vagas para 11 famílias; o Abrigo Lilás, conveniado com a prefeitura e gerenciado pelo Ilê Mulher; e a Casa Abrigo Oásis, instituição independente que possui um convênio até abril de 2022 com o governo do Estado para atender a demanda de Porto Alegre e de municípios sem políticas de abrigamento.
As autoridades justificam a omissão da Mirabal na cartilha em razão da falta de requisitos necessários para operar, como alvarás de licença e funcionamento (sanitário e dos Bombeiros), e uma suposta ausência de equipe técnica para lidar com as demandas das abrigadas – embora já tivesse uma psicóloga, uma assistente social e uma advogada. Para Marcelo Ries, promotor de justiça responsável pelo caso, a Mirabal “foi aberta sem qualquer organização legal a tempo”. Após a vistoria no local, ele também apontou “precariedade da infraestrutura física”.
De fato, a Mirabal iniciou como um movimento social para dar conta de uma demanda de mais espaço de acolhimento. Por isso, sua criação não contou, desde o início, com as formalizações exigidas. Mas, segundo suas organizadoras, não é por falta de esforço. “Já estamos correndo com essa papelada e solicitando os alvarás. Também tivemos vistoria, mas tudo demora e em tudo vai dinheiro, e nos sustentamos com doações”, disse Andressa, uma das coordenadoras. “A recomendação era que encaminhássemos essas mulheres em 30 dias para outro espaço, mas a decisão é delas e elas não querem se mudar, porque já passaram por um abrigo do município e não gostaram”.
Os entraves envolvendo a Mirabal se agravaram em 2018, quando o Estado cedeu um novo local para seu funcionamento, uma antiga escola estadual, localizada na zona norte. Mas a prefeitura, que era dona do terreno e estava participando das negociações, desistiu do acordo de última hora e entrou com um pedido de reintegração de posse. O movimento recorreu da decisão e alegou que a prefeitura agiu de má-fé, ganhando em primeira instância; o processo segue. Sem ter uma sede formal, a Mirabal ficou numa situação institucional ainda mais frágil que a impede de participar de editais públicos ou garantir alvarás no tempo previsto.
Questionada pelo Matinal sobre o funcionamento da Mirabal, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da Capital declarou, via assessoria, que a Casa Mirabal possui “fortes características de movimento social”. “A problemática central é que a Casa Mirabal possui fortes características de um movimento social, o que é extremamente importante para respostas do poder público às necessidades da população. Mas que têm limites neste papel, uma vez que o movimento social não tem a prerrogativa de operar dentro da institucionalidade. Como proposta de serviço, a Mirabal opera à revelia das legislações que os movimentos lutaram para conquistar”.
A direção da Mirabal acredita que os motivos da prefeitura são políticos. Andressa disse que se reuniu com secretários municipais e até com a primeira dama, Valéria Leopoldino, que, de início, se prontificaram a colaborar com o processo de regularização da casa e as demais necessidades. Mas mudaram a postura em conversas posteriores. “Nós acreditamos que eles foram orientados a cortar o contato conosco. Os ataques são muito políticos, eles deixaram bem claro como não querem dar espaço para um coletivo de esquerda”, disse.
Atualmente, a casa é coordenada por cinco mulheres e conta com uma equipe de atendimento psicossocial e jurídico, com uma psicóloga, uma assistente social, uma advogada e duas estudantes de direito, todas voluntárias. O financiamento é feito por meio de contribuições. Além de oferecer moradia e alimentação, um dos pilares é promover experiências profissionalizantes para as abrigadas com cursos e oficinas, como de culinária e costura. Como parte do acompanhamento psicossocial, também são realizadas rodas de conversa e outras atividades em grupo, que são abertas também para mulheres que não vivem no local.
Infográfico: Juan Ortiz | Reprodução | Matinal Jornalismo
A organização agora luta para regularizar o espaço como uma casa-abrigo aprovada pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS). Com isso, será possível participar de editais de financiamento público e adquirir a verba necessária para contratar as profissionais de psicologia e assistência social que já trabalham na casa. Mas, com o pedido de fechamento feito pelo MP, a polícia civil e a Brigada Militar foram orientadas a não mais encaminhar mulheres para a Mirabal e afirmaram, em nota, que estão cumprindo a determinação e que não têm atribuição para comentar sobre o caso.
Sem apoio do poder público, a organização conta com a ajuda da sociedade civil para se manter. Com a luz cortada devido a dívidas do imóvel cedido pela prefeitura, a organização ficou em vários períodos às escuras – em um deles, por mais de 86 dias – até uma vizinha ceder a fiação necessária para a casa não paralisar as atividades. O pagamento da alimentação também é feito com ajuda de doações.
A deputada estadual Luciana Genro (PSOL) afirma que o descaso do governo gaúcho com o combate à violência contra as mulheres é institucionalizado. “Em 2019, no meu primeiro ano como deputada, o Estado tinha destinado apenas R$ 20 mil reais para políticas públicas de combate à violência das mulheres. A secretaria havia sido extinta, e a Coordenadoria das Mulheres, criada no lugar da secretaria, não tinha sequer titular ainda nomeada”, relata. “Passaram-se dois anos do governo Leite sem que ele nomeasse a titular para o departamento de mulheres. Ficou evidente o descaso. A única coisa concreta realmente feita foi esse programa chamado Acolhendo Vidas, com verbas de emendas que eu destinei”, completa.
Helena espera que a casa que dá abrigo a ela e seus filhos não feche as portas. Ela conta que a rede de apoio, o ativismo e os ensinamentos colhidos na Mirabal são o diferencial em relação a outros locais. “Sendo usuária desse espaço, a gente consegue ver o quanto é bom ter pessoas que te ajudam, e aqui tem pessoas que tem organização, tem informação”. Ela comenta que hoje já entende mais sobre machismo, violência, feminismo e política, e que isso a ajudou a se reerguer.
As mulheres que já conseguiram outro lugar para morar e não vivem mais na Mirabal costumam voltar para receber doações de roupas, alimentos básicos e fraldas. “Vão ter que ter muita coragem para fechar esse lugar. Não é só um lugar para morar, é um lugar para tu buscar ajuda para dentro da tua casa. A Mirabal não é só um espaço para mulheres vítimas de violência, é uma ajuda para toda a comunidade.”
“Precisamos ver uma atuação mais integrada da rede de acolhimento. E quando a gente fala de rede, temos de pensar em vários setores, em termos de serviço, de saúde, de assistência e instituições que possam recebê-las” diz a pesquisadora Habigzang. “A questão da moradia é uma condição básica para o rompimento da situação de violência. Ela precisa ter para onde ir. Ela precisa ter um lugar seguro para ela e para os filhos”.
* Alguns nomes e informações pessoais foram alterados ou ocultados pelo Matinal a fim de manter o sigilo e a segurança dos envolvidos.