24 Fevereiro 2022
"Muitas pessoas devem suas vidas a ele". Assim comentou Rochelle Walensky, diretora do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, sobre Paul Farmer, médico estadunidense que faleceu aos 62 anos na noite de segunda-feira. Seu nome não é conhecido do público em geral, especialmente na Itália. Mas Farmer foi uma figura lendária na medicina, particularmente durante uma pandemia que está ampliando as disparidades sociais em todo o mundo.
A reportagem é de Andrea Capocci, publicada por il manifesto, 23-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como médico, dedicou sua vida à saúde dos pobres do mundo: a parada cardíaca fatal o pegou dormindo em seu alojamento em Butaro, Ruanda, onde havia criado a "Universidade para a equidade da saúde global". Mas, além de tratar pacientes, Farmer foi um dos pioneiros da antropologia médica e um crítico feroz do neocolonialismo implícito nas políticas de saúde pública. Demasiadas vezes, denunciava Farmer, não se leva em consideração a ligação entre estado de saúde e condições econômicas.
Ele tinha aprendido isso especialmente no Haiti, no início da década de 1980. Na época, Farmer, com pouco mais de 20 anos, alternava os exames em Harvard com longas estadias em Cange, uma aldeia no interior da ilha do Haiti onde a AIDS já era devastadora. Não é por acaso que a síndrome da imunodeficiência adquirida, nos primeiros tempos, havia sido chamada de "doença dos 4 H": eram as iniciais de homossexuais, usuários de heroína, hemofílicos e, justamente, haitianos. E foi em Cange, em 1983, que Farmer fundou o primeiro centro médico aberto a portadores de Aids que não podiam arcar com tratamento particular, o único disponível no paupérrimo estado caribenho. Os agricultores de Cange haviam perdido tudo quando o governo inundou suas terras para criar uma hidrelétrica.
Com eles o "dokté" falava crioulo: ele o aprendera ainda menino, quando a família morava em um trailer e circulava pela Flórida para colher laranjas, um trabalho sazonal típico dos migrantes desembarcados das Antilhas.
A partir do Haiti, em 1987 Farmer criou a “Partners in Health”, uma ONG que hoje atua em doze países e quatro continentes. Enfrentando as epidemias de AIDS no Haiti, da tuberculose nas prisões russas, de Ebola em Serra Leoa até a atual, de Covid-19, Farmer praticou medicina social em campo, ao mesmo tempo identificando os agentes patógenos e as causas sociais das doenças infecciosas.
Os hospitais de Partners in Health são ao mesmo tempo centros de tratamento, laboratórios de pesquisa acadêmica, locais de formulação de políticas. Em que Farmer combinou a experiência do médico com a paixão de um crítico ferrenho da sociedade, muitas vezes terminando em conflito com as autoridades: tanto o governo haitiano quanto o mexicano - Farmer frequentou muito comunidades zapatistas - o expulsaram.
Por outro lado, argumentava o médico, não faz sentido tratar as pessoas para que depois retornem às condições desesperadoras que as adoeceram. A doença tem raízes sociais e deve ser enfrentada através da estrutura social.
Na origem das doenças, Farmer colocava a "violência estrutural", um conceito emprestado da teologia da libertação de Johan Galtung. Indicava a violência sistemática presente em uma ordem social e, portanto, exercida indiretamente por todos aqueles que dela fazem parte.
"A distribuição geográfica da AIDS e da tuberculose - assim como a da escravidão em épocas anteriores - é determinada historicamente e guiada pela economia", escreveu ele em um artigo de 2004 na revista Current Anthropology.
A experiência de campo em alguns dos lugares mais desesperados do planeta não impediu Farmer de lidar com as injustiças mais próximas. Pelo contrário, foi precisamente essa experiência que lhe permitiu compreender muito cedo algumas das questões cruciais da atual pandemia de Covid-19. “O que pode ensinar uma epidemia de Ebola para a nossa situação atual – escrevia no Fever, feuds and Diamonds assim que a pandemia começou - é que as condições materiais, mais do que as diferenças culturais, moldarão a pandemia de Covid-19. Será fundamental entender como os apelos ao distanciamento não serão respeitados por quem não tem a possibilidade material de respeitá-los”.
Mas até mesmo nos EUA mais abastados, sua forma de exercer a medicina provocou conflitos, inclusive muito recentes. Como diretor da divisão de saúde global do Brigham and Women's Hospital em Boston, havia trabalhado para garantir que, pelo menos naquele hospital, o direito ao tratamento também fosse estendido às minorias excluídas do serviço de saúde estadunidense, baseado em seguros privados.
Uma afronta que a extrema direita suportou até poucos dias atrás: em 22 de janeiro, uma manifestação neonazista teve como alvo o hospital e seus médicos – em particular a médica afro-americana Michelle Morse, estudante de longa data e colaboradora de Farmer. De Ruanda, Farmer reagiu com um artigo no Boston Globe, em que convidava todos os colegas a "praticar o antirracismo na medicina". O que ele estava fazendo, e continuou a fazer até o fim.
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A boa saúde. A morte de Paul Farmer, uma figura lendária da medicina, especialmente durante a pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU