16 Fevereiro 2022
"Se na devotio moderna se vivia do culto do santo ou da prática devota, na devotio pós-moderna o eu é o verdadeiro templo, o próprio bem-estar psicoespiritual, o único culto, a satisfação dos próprios desejos a única oração, a contemplação de si a única liturgia", escreve Goffredo Boselli, monge italiano e especialista em liturgia, em artigo publicado por Vita Pastorale, de fevereiro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma das maiores dificuldades que a liturgia sofre hoje é a espiritualidade que atualmente prevalece no catolicismo europeu. As tendências hoje dominantes na espiritualidade não estão enraizadas na objetividade das Escrituras, na mensagem cristã e do rito litúrgico, mas principalmente na subjetividade da experiência individual. A vida espiritual proposta alimenta-se cada vez menos da escuta comunitária e pessoal das histórias bíblicas, mas da escuta das narrativas individuais, daquilo que se sente e se vivencia interiormente. Segundo muitos observadores, isso criou um "narcisismo espiritual", um efeito e reflexo do que Joel Paris definiu como "narcisismo cultural". Conceito que ele forjou para descrever como a sociedade moderna incentiva as pessoas a se concentrarem em si mesmas, favorecendo o enfraquecimento dos laços com a comunidade.
Os livros de espiritualidade que na Itália, a partir dos anos 1990, formaram boa parte da geração de fiéis foram aqueles de Carlo M. Martini, Enzo Bianchi, Gianfranco Ravasi, André Louf, para citar apenas os mais conhecidos. Textos que têm como fundamento a palavra de Deus, o episódio evangélico, a pessoa de Jesus Cristo, a vida eclesial, e conduziam ao testemunho, ao cuidado do próximo, ao diálogo com o mundo, ao empenho político.
Hoje esses textos deram lugar a publicações que difundem uma espiritualidade psicoantropológica, cujos temas principais são o cuidado de si, o senso do limite, a cura interior, o sentir-se bem consigo mesmo... Temas antropológicos e psicológicos que se alicerçam nas ciências humanas e, às vezes, até mesmo em romances e contos de fantasia. Não têm sequer a profundidade das grandes virtudes morais como a integridade, a coragem, a tenacidade de que Mounier e Guardini são mestres, mas propõem estados emotivos como a fragilidade, a graciosidade, o humorismo. A referência a Jesus Cristo ou à passagem bíblica serve apenas para confirmar o pressuposto central que, na realidade, é autônomo da palavra do Evangelho.
Se na devotio moderna se vivia do culto do santo ou da prática devota, na devotio pós-moderna o eu é o verdadeiro templo, o próprio bem-estar psicoespiritual o único culto, a satisfação dos próprios desejos a única oração, a contemplação de si a única liturgia. Denunciando o desaparecimento dos ritos na sociedade atual, o filósofo Byung-Chul Han explica o quanto eles são mais necessários hoje do que nunca, pois "os ritos se afastam da interioridade narcísica [...] os ritos produzem um distanciamento de si, uma transcendência de si. Eles despsicologizam, desinteriorizam quem os encena”.
A espiritualidade narcísica é inimiga da liturgia cristã que é, ao invés disso, culto não de si mesmo, mas do Outro celebrado junto com os outros. Ao fazer com que seja tomada distância de si, reconhecendo o próprio pecado e educando para o pedido de perdão; desviando a atenção de si mesmo, pede a escuta da palavra de Deus; descentralizando de si mesmo convida a interceder pelos outros; celebrando a memória do Corpo doado, dá a conhecer no sinal da partilha do pão o mandamento de não viver mais para si mesmos. Uma espiritualidade que exclui a simbologia dos ritos está destinada a criar crentes em si mesmos e não no Evangelho de Jesus Cristo.
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O “narcisismo espiritual”. Artigo de Goffredo Boselli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU