15 Fevereiro 2022
É singular que a entrevista do Papa Francisco no programa “Che tempo che fa”, do canal Rai 3, tenha sido criticada antes mesmo de ir ao ar. Não estou falando de quem gostaria de estar no lugar de [Fabio] Fazio. Estou me referindo a quem agitou o fantasma de uma dessacralização do papel papal em um programa que é um coquetel de informação e entretenimento.
O comentário é de Marco Politi, jornalista italiano, em artigo publicado em Professione Reporter, 10-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É um assunto batido, desde que Karol Wojtyla decidiu se conectar com Bruno Vespa no programa “Porta a porta” em 1998, fazendo-lhe a (falsa) surpresa de um telefonema. Havia sido tudo organizado pelo genial porta-voz vaticano Navarro-Valls.
João Paulo II foi o primeiro a entregar-se sem proteção aos jornalistas nas coletivas de imprensa no avião, durante os voos internacionais, permitindo que cerca de 30 enviados de todo o mundo fizessem qualquer pergunta. Eventos que se repetiam em média quatro vezes por ano: um screening excepcional do papel e da geopolítica papais (Bento XVI, não se sentindo à vontade, pediria que as perguntas fossem enviadas com antecedência. Francisco retomou o costume das perguntas não combinadas).
João Paulo II e Francisco sempre consideraram lucidamente a relação com os meios de comunicação como um instrumento de governo. Não é por acaso a escolha que o pontífice argentino fez pouco depois de ser eleito. Abrir um diálogo constante com Eugenio Scalfari. Significava interagir com a opinião pública fora de todo recinto confessional.
Francisco é o primeiro papa que não nasceu em um ambiente quase exclusivamente católico, em um vilarejo italiano, em um vilarejo bávaro, em uma cidade de província polonesa (embora já com Wojtyla se pudesse ver quanta influência teria sobre o seu pontificado o fato de em Wadowice haver uma forte comunidade judaica e de os judeus serem seus amigos).
Buenos Aires é uma metrópole do mundo globalizado; três milhões de habitantes vivem no núcleo central e, com a grande faixa urbana, eles chegam a 14 milhões. Uma mistura de etnias. Uma encruzilhada de religiões e tendências espirituais: católicos e reformados, judeus, muçulmanos, pentecostais, agnósticos, ateus, seguidores de religiões orientais e pertencentes a uma robusta maçonaria.
Scalfari, leigo, ateu, fascinado e atento ao fenômeno religioso, com forte marca anticlerical, era o interlocutor perfeito. Mediando as conversas com o pontífice de acordo com a sua cultura, o fundador do jornal La Repubblica as levava à página para um público transversal. Uma escolha estratégica, que reflete a vontade de Bergoglio de interagir com a sociedade no seu pluralismo cultural.
Igualmente estratégica foi a decisão de conceder a primeira grande entrevista sobre o pontificado à emissora mexicana Televisa em 2015 (conduzida por Valentina Alazraki, ela continua sendo uma página do jornalismo, replicada em 2019 para um segundo encontro com Bergoglio). Desse modo, Francisco se reconectava ao vivo com o grande e complexo mundo católico hispano-americano, fortemente presente também nos Estados Unidos.
O pontífice argentino sempre foi eclético nas suas escolhas. Passando por jornais como o El Pais na Espanha ou por revistas como a Zeit na Alemanha, à milanesa Scarp de Tennis, símbolo daquelas periferias existenciais para as quais a Igreja deve se dirigir em primeiro lugar.
Identificar o canal de televisão italiano para dizer “sim” é, como sempre, no Vaticano, uma avaliação cuidadosamente ponderada. Vespa já tivera suas primícias com Wojtyla. Escolher [Enrico] Mentana poderia parecer uma escolha de campo (editorial). Bergoglio já havia sido recebido pelo canal Mediaset duas vezes em 2021. E, naturalmente, em 2020, ele havia sido entrevistado pela emissora dos bispos italianos, Tv2000.
Por isso, a Rai 3, com Fazio. Um programa de informação e, em sentido amplo, de entretenimento.
Jason Horowitz, correspondente do New York Times, definiu a transmissão como “newsless”. Um jogo de palavras entre “sem notícias” e “sem utilidade”. Vindo de um jornalista alheio às tensões concorrenciais italianas, vale a pena aprofundar.
Em primeiro lugar, há três lições que podem ser aprendidas com o evento.
Não engane os espectadores. É inútil fingir que se trata de uma entrevista ao vivo, se, depois, um olhar atento descobre que o relógio do papa marca horas diferentes em diversos momentos. Então, se trata de uma transmissão gravada, editada e trabalhada.
A Itália é um país plural. A emoção insistente do entrevistador, as suas exclamações de admiração diante das palavras do pontífice não refletem sequer minimamente o clima cultural da sociedade italiana contemporânea. Às vezes, parecia-se ouvir tons à la “Bianca Figura”, que lembravam décadas distantes, em contraste com o panorama atual, em que o consenso em torno de Bergoglio é muito alto e, ao mesmo tempo, em que 30% da população sente Deus pouco próximo, enquanto 20% absolutamente não crê ou acha a própria pergunta indiferente.
Faltavam perguntas cruciais. Isso foi observado por muitos e não por colegas invejosos. Nada sobre a crise Rússia-Otan, que paira sobre a Europa, nada sobre os episcopados que estão investigando os abusos e sobre aqueles (como na Itália) que adiam continuamente a questão, nada sobre o celibato dos padres e sobre o acesso das mulheres ao sacerdócio, do qual se fala na Alemanha.
A primeira interrogação é se o Vaticano rejeitou questões candentes. A segunda é porque, eventualmente, Fazio acabou se deixando impor limites que não foram impostos aos jornalistas estrangeiros. Um jornalista sempre saberia fazer até mesmo questões espinhosas com graça e clareza.
De sua parte, Bergoglio pôs em prática a sua conhecida capacidade comunicativa. Ele não fala como um papa-monarca, não fala ex cathedra, não usa o tom do comando ou da lição. Sente-se a sua escolha: mover-se como um discípulo de Cristo pelas estradas poeirentas da Galileia, no meio de pessoas de todos os tipos e tendências.
Sente-se a sua convicção de que ser cristão não é apenas ir à missa aos domingos, mas significa se gastar pelo outro como o bom samaritano. Cuidar dos pobres, de quem é deixado para trás, dos migrantes, dos famintos, das crianças abandonadas a si mesmas ou afogadas no grande túmulo do Mediterrâneo.
Refletir sobre a venda de armas e sobre o dinheiro que é sugado pelas guerras, enquanto poderia saciar a sede de educação e a fome de comida. Refletir e agir para combater injustiças enraizadas e a desigualdade. Saber perdoar.
Francisco sempre dialoga de modo pacato, fala – segundo um ditado alemão – na mesma altura dos olhos do seu interlocutor. Para as pessoas, para os ouvintes de qualquer tendência, a sua mensagem chega de modo direto. E isso continua agradando. Quase sete milhões acompanharam o programa, com picos de 8,7 milhões.
Como toda aparição midiática papal nunca é casual e o momento importa, também é justa se fazer uma última pergunta. Por que agora? Por que Bergoglio quis se apresentar precisamente agora na arena televisiva
A resposta pode ser encontrada na dramática e envolvente cerimônia do dia 27 de março de 2020, primeiro ano da pandemia, quando Francisco, sozinho na Praça de São Pedro deserta, carregou sobre os ombros a angústia e a desorientação de milhões de pessoas, lembrando que todos estamos no mesmo barco, que precisamos nos salvar todos juntos e que devemos escolher entre o que é necessário e o que é prejudicial. “Ou somos todos irmãos ou tudo desmorona”, diria mais tarde.
E, na sua encíclica Fratelli tutti de outubro de 2020, ele desenvolveria então a visão de um recomeço marcado por uma nova economia “social” de mercado, pela superação das desigualdades, pelo modelo de uma economia sustentável em termos de combate decisivo à degradação natural. As coisas não estão indo assim. Fala-se muito de green economy, e, enquanto isso, as desigualdades crescem em nível mundial (mais de 100 milhões de novos pobres, outras centenas de milhões recuados na perspectiva de ascensão social, o tema dos migrantes praticamente posto de lado, a expansão de uma nova mentalidade de guerra fria).
Então, Francisco sentiu a necessidade de intervir. Ele sente os crescentes sinais negativos. Entendeu que o slogan “estamos todos no mesmo mar, mas em barcos diferentes” vai ganhando força...
Por isso, ele insiste, como fez na TV, que é preciso “tocar as misérias com a mão” e não se voltar para o outro lado.
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Papa na TV italiana: por que agora e o que quis dizer? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU