24 Janeiro 2022
"A Igreja não está sozinha na incapacidade de entender a plenitude dessa mudança. A política não a entendeu, as Escolas e as famílias também não! O século XXI impõe à Igreja o seu maior desafio. E o Papa Francisco é o papa certo ao captá-lo com tranquilidade e segurança. Ele é o homem da travessia! O que nos espera do lado de lá, tem no processo sinodal agora iniciado, a sua maior metáfora: 'Só Deus sabe'!", escreve Manuel Joaquim R. dos Santos, presbítero da Arquidiocese de Londrina – PR.
"Um novo Francisco na Igreja requer uma reforma eclesial para os novos tempos, novos desafios, novas realidades. É tempo de Evangelizar, de sair das estruturas por vezes arcaicas, indo pelas ruas, pelas periferias, numa Igreja 'em saída'. O Sumo Pontífice diz que a Igreja precisa estar de portas abertas, como desejou o Concílio Vaticano II, para um novo ardor, novo ar que remova o mofo existente” (Padre Gerson Schmidt em artigo publicado no site Vatican News dia 03 de janeiro).
O Papa Francisco, não veio apenas do fim do mundo, como referiu no primeiro discurso de apresentação. Ele chegou também no final de um mundo, que dá os seus últimos suspiros. É aqui, neste sítio quase arqueológico, que devemos encontrar e compreender Bergoglio. Ele é fruto do Vaticano II, um Concílio atropelado na sua concretização, por duas ondas gigantes e concomitantes: a mudança de época que se começou a configurar no final dos anos oitenta e os freios acionados dentro do Vaticano também na mesma época. O grande Pentecostes dos anos 60, como já foi chamado, perdeu o impacto por esses dois motivos. Na virada do ano 2000, não eram poucos os jovens padres que o ignoravam ou desconheciam, ao mesmo tempo que surgiam vozes pedindo um novo Concílio!
Mas, é também filho da teologia nascida e crescida em meios populares, das pertinentes reflexões da teologia da Libertação, das Conferencias de Medellín, Puebla, Santo Domingo e principalmente Aparecida. O papa Argentino vivenciou os ares renovadores que inspiraram a Igreja Latino Americana e exerceu o seu ministério pastoral envolto neles. Em 2013 ele estava preparado para a Cátedra de Pedro. Quando uso este termo, refiro-me ao momento, ao kairós, que a Igreja vivia desde a virada do milénio.
Embora Bento XVI tenha substituído o longevo papa João Paulo II sem nenhuma novidade no campo eclesiológico ou reformador, os novos tempos, já exigiam há mais de uma década, um “Papa Francisco”. Chegam-nos várias elucubrações que dão conta de que no Consistório de 2005, o argentino quase foi eleito! Seja como for, os últimos anos do papa polonês, marcados pela decrepitude de um ancião se arrastando pelos corredores do Vaticano, totalmente dependente, eram a maior analogia de uma Igreja que necessitava urgente se repensar à luz da Tradição e da sua Missão original, já tão bem apontada pelo Vaticano II.
Francisco é um papa de transição. Peço vênia aos leitores. Não me refiro evidentemente a qualquer ideia de fugacidade que possa caracterizar o seu pontificado, em vista da idade ou da significativa rejeição às suas ideias reformadoras. Ele é o timoneiro de uma barca que procura atravessar entre dois mundos. Entre duas épocas. O mar é revolto, e atracar na outra margem, mostra-se uma tarefa hercúlea. O que era, não se configura como consistente; as duas margens se escondem entre as densas brumas. A primeira, memória refletida pelo forte farol que ilumina acima delas, a segunda, totalmente escondida entre as gotículas de água que se evaporam. Francisco é o homem cujo passado o leva a compreender a necessidade de enfrentar um futuro incerto, mas obrigatório. É o papa da transição entre dois mundos. Não é o primeiro a fazê-lo e talvez não seja o último. Dois mil anos de história, foram suficientes para nos mostrar um cristianismo com a capacidade de resiliência e reforma, realmente divinas! O momento atual, porém, tem poucos paralelos com o passado. Não são apenas invenções tecnológicas que revolucionam modos de produção e interferem indelevelmente na demografia e sociologia. Não é simplesmente uma época de “grandes mudanças”, às quais a Igreja Católica e seus papas tiveram que se adaptar, em geral sob longas penas! Trata-se de fato, de uma mudança de época!
Yuval Harari nos apresenta o século XXI com as cores vivas de um novo habitat e uma nova civilização, para a qual poucos ou quase nenhuns, que nasceram no século passado, estão preparados! “Embora a tecnologia até agora apenas substitua a força física do homem, a inteligência artificial, IA, em breve o ultrapassará no campo que pensava ser dele: a cognição. Os médicos serão substituídos por um sistema que compartilhe instantaneamente todos os dados coletados sobre patologias e remédios em todo o mundo, permitindo diagnósticos mais seguros e melhores tratamentos. Essa rede também estará acessível de forma permanente e em qualquer lugar, graças às informações transmitidas pelos sensores biométricos dos pacientes. Veículos autônomos conectados em uma rede garantirão uma circulação segura e otimizada. Os sistemas de IA, em breve, vincularão nosso estado emocional e nossa sensibilidade para nos oferecer trabalhos artísticos, existentes ou personalizados” (in 21 questões para o século XXI).
Os indivíduos que viverem em 2050 terão mais dificuldade em nos entender, do que nós em relação aos medievos. Os ministros ordenados dessa época, serão totalmente interativos e terão na tela e na mente, questões relevantes sobre humanização, ecologia, direitos humanos e o próprio conceito de verdade. Não estudarão em Seminários fechados e possivelmente viverão em famílias que se afirmarão como possibilidades reais, em meio à diversidade consagrada pela nova cultura. A Igreja ter-se-á libertado de estruturas pesadas e se transformado em hospital de campanha, atuando nas periferias existenciais, como deseja o atual papa. A sinodalidade original terá sido resgatada e o clericalismo, coisa do passado! A que preço tudo isso, nos perguntamos!
Um preço alto. Um nascer de novo. Francisco não escreve o último parágrafo desta história de transição. Nem está garantido que os próximos papas o seguirão neste percurso. A Igreja sempre contou com o tempo a seu favor, para qualquer mudança que se impunha (ou o Espírito Santo lhe impunha!). Contudo, agora o custo será pesado. Não há tempo. Da escolha e formação de novos padres, ao combate aos retrocessos saudosistas e clericalizantes, ao critério e processo na escolha de bispos, às Igrejas domésticas com formação contínua e eficaz e à revisão total do conceito de paróquia, bem como de todas as estruturas, o tempo se esvai.
A perda do número de fiéis não me parece ser o mais preocupante. Como já foi escrito, “o recuo social e a perda de relevância política da religião cristã não coincidem exatamente com uma verdadeira crise de fé e espiritualidade”! (Francesco Consentino). Ou então, segundo o mesmo autor, a crise “põe Deus em crise para que possamos encontrá-lo de uma forma totalmente nova”! Nos reinventarmos à luz do Evangelho e da Tradição, é a possibilidade real de resgatarmos um Deus que está vivo e que tem lugar à mesa dos que fazem a agenda desta nova época!
Francisco não é, porém, um simples “papa de transição”! Ele é um semeador de esperanças, que impulsiona a Igreja no terceiro milênio rumo ao desconhecido, com a força e vitalidade próprias da Igreja como tal. Francisco acredita piamente que a Igreja não é “mais uma instituição”! Aliás, denuncia os que a enxergam apenas como isso! O papa atual avança na travessia com a determinação dos antigos navegadores, que mais do que instrumentos, tinham intuições! O bispo de Buenos Aires em Roma, é um homem de fé. Fé em Deus e fé no homem. No século XXI, a volta da máxima socrática “conhece-te a ti mesmo” ajudará e muito, os que precisarão enfrentar o novo tempo com galhardia e segurança. Isto vale de modo singular para a Igreja. Evangelizar neste contexto será caminhar junto, manter-se humanizado e tornar o mundo mais humano. Aliás, tese presente nos três documentos de Francisco (Evangelii Gaudium, Laudato Si e Fratelli Tutti).
A Igreja de Jesus Cristo não está fora do mundo e não ficará alheia a esta mudança radical de época. Até à Revolução Francesa, ela mostrava os caminhos normativos por onde a civilização ocidental deveria caminhar. O século XIX foi repleto de tensões e conflitos entre a Instituição e o surgimento da cultura liberal, cada vez mais laica e laicizante. No século XX ela conheceu o seu maior adversário: a indiferença dos homens, cada vez mais distantes da Igreja que os gerou pelo batismo. O Concílio, nos anos sessenta, foi contundente na necessidade de se colocar a Igreja Católica em sintonia plena com o mundo e suas vicissitudes, tornando-se empática à humanidade em busca de paz, e usufruindo já de suas principais invenções. Não tínhamos dúvida, de que era o remédio certo para o momento. A Lumen Gentium e a Gaudium et Spes retrataram o brilhantismo do aggiornamento desse Concílio Ecumênico.
Porém, os anos subsequentes, superaram em tudo o que se conhecia até então. A revolução sexual e estudantil dos anos 60 questionando padrões culturais e autoridades, mas principalmente o advento da internet, cujas aplicações comerciais começaram a acontecer nos anos oitenta com os primeiros provedores de serviço da Internet (ISP – International Service Providers) possibilitando ao usuário comum a conexão com a Rede Mundial de Computadores, de dentro de sua casa, fizeram com que aos poucos, o tiro certeiro do Vaticano II se perdesse na nebulosidade que envolvia o seu objetivo.
O homem não estava mudando rapidamente. Surgia sim, um novo homem! A partir dos anos 2000 com a internet rápida, o surgimento da mídia eletrônica e redes sociais, com comunidades ativas em todas as dimensões, demos adeus à sociedade do final do século passado. A Igreja não está sozinha na incapacidade de entender a plenitude dessa mudança. A política não a entendeu, as Escolas e as famílias também não! O século XXI impõe à Igreja o seu maior desafio. E o Papa Francisco é o papa certo ao captá-lo com tranquilidade e segurança. Ele é o homem da travessia! O que nos espera do lado de lá, tem no processo sinodal agora iniciado, a sua maior metáfora: “Só Deus sabe”!
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Tempo de travessia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU