07 Janeiro 2022
O acesso à água de consumo humano no Semiárido impulsiona outras mudanças nas vidas das famílias, a exemplo da conquista da segurança alimentar e nutricional. Na região, um milhão de famílias ainda não têm acesso ao recurso e vivem à margem deste Direito Humano.
Na Serra do Urubu, famílias transportam água no lombo do jegue - Foto: Acervo Cactus
A reportagem é de Adriana Amâncio, publicada por Articulação do Semiárido - ASA, 05-01-2022.
O ano de 2022 começou de forma bem distinta para a adolescente Estefany Lima, de 13 anos, que mora na comunidade Caruá, município de Vertentes, no Semiárido de Pernambuco, e para Suzana Pereira, de 37 anos, que mora na comunidade Serra do Urubu, município de Mata Grande, região semiárida de Alagoas. A adolescente, que “não conhece o que é seca”, como ela mesma diz, pois nasceu com a cisterna de 16 mil litros perto de casa, e está de férias da escola, vive, agora, o momento de plantio de hortaliças e a produção de mudas. Para isso, ela e a família contam com a água de produção, disponível na cisterna de 52 mil litros, outra tecnologia que a família possui.
Já para Suzana, que não possui sequer a cisterna de 16 mil litros, o ano começa sem descanso. Todos os dias, ela acorda às 4h, e, ao lado das filhas, percorre cerca de 3km com a ajuda de um jegue, até a fonte mais próxima, no meio da Serra, para pegar água. Até às 6h10, quando ela sai para o centro da cidade onde trabalha como babá de duas crianças, são duas viagens. Ao chegar, às 13h, Suzana retoma as viagens em busca de água, desta vez, sem a ajuda das filhas, encerrando tudo às 19h. Segundo a agricultora, o cansaço é tanto que, às vezes, ela apela para cair chuva do céu. “Tem vezes que eu tô tão cansada, que fico olhando para ver se cai chuva. Quando a chuva vem, eu me levanto e em cada goteirinha da minha casa, eu boto um balde. Eu faço uma coleção de baldinho. Água aqui é ouro ”, afirma.
Estefany, que vai iniciar o 1º ano do Ensino Médio, teve uma infância marcada pela transição agroecológica da área onde vive que, antes, era seca, e após à chegada da cisterna, foi tomada pelo verde dos legumes, que fizeram com que a família passasse a “comer alimento saudável, não só na época da chuva, mas o ano todo”, destaca. Hoje, ela saboreia o seu alimento preferido: o alface, produzido na horta, e comercializa produtos medicinais, cultivados também nos arredores de casa. Tudo o que ela conhece da seca foi repassado pelo pai e pela mãe, que quando tinham a sua idade, saiam às 2h da madrugada e enfrentavam longas filas em busca de água. Por essa razão, o pai de Estefany, por exemplo, entrou na escola apenas aos 17 anos.
Criada pela mãe e pela avó, Suzana, desde os dez anos de idade, enfrenta longas caminhadas em busca de água. Quando a mãe saía para trabalhar, ao lado das duas irmãs mais novas, ela buscava água com baldes na cabeça. Uma vez que a fonte mais próxima era de “minação” ou seja, secava no verão, a solução era buscar água na fonte mãe, que jorrava água o ano todo, porém ficava bem mais distante. “Era uma grota, a gente subia com os baldinhos na cabeça. Era uma ladeira tão alta, que se a gente olhasse para trás, a gente caia, então, a gente subia direto. Quando a gente queria tomar um fôlego, parava, olhando para frente mesmo, pra seguir”, relembra.
Mesmo com todo o sufoco, Suzana concluiu o Ensino Médio. “A gente dava as viagens e na última já ia para tomar banho, para ir para a escola”, recorda. Ela casou e permaneceu na comunidade onde nasceu, e, hoje, quando o marido sai para trabalhar fora, realiza as viagens da manhã ao lado das filhas. Ao longo do dia, Suzana realiza cinco viagens em busca de água. Tanto esforço tem explicação: garantir a produção de alguns alimentos com água trazida da fonte. “Nós temos limão, laranja, laranja - cravo, abacate, tudo o que nós plantamos e já tá dando”, afirma.
Na definição da coordenadora da organização não governamental Gabinete de Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá, Direitos Humanos, de forma simples, são as “conquistas históricas da população com relação a tudo que é preciso para se viver em sociedade”. Esse conceito inclui necessidades básicas para se viver com dignidade, a exemplo do acesso à água, à educação e à moradia.
Ainda segundo Edna, o Direito Humano à água não está entre os direitos sociais previstos na Constituição. Entretanto, completa ela,“existe um amplo marco legal que coloca a água como um Direito Humano, afirmando que à União cabe o dever de cooperar com os agricultores e agricultoras para que eles tenham acesso à água”, esclarece. Edna finaliza avaliando que o termo “cooperar é muito fraco diante dos desafios que se tem para a convivência com o Semiárido. Ela reforça: “como é possível ter água se não tiver terra? E sem água e terra, como é possível garantir a dignidade da família, a segurança alimentar e hídrica”, questiona.
Acesso à água e à vida digna andam de mãos dadas. Ao conhecer ambas as histórias, Edna avalia que Suzana, considerando o esforço que esta faz para buscar água, “não tem direito a descansar, descansar para ela significa não ter água. [Ela] não tem direito a existir para além de sobreviver”. Uma vida digna, na avaliação de Edna, envolve o direito ao lazer, à socialização, e viver isso após um dia de viagem quando o seu corpo tomba após realizar tanto esforço físico, é uma crueldade”, conclui.
Certamente, a vida de Suzana com água perto de casa, podendo dedicar mais tempo à relação com a família e às outras atividades seria bem diferente. Da mesma forma, a relação das suas filhas com os estudos seria bem diferente caso não houvesse a necessidade de fazer longas viagens em busca de água ao lado da mãe.
Por outro lado, Edna avalia que Estefany, que já nasceu com água perto de casa, vive o direito humano materializado no acesso às condições para estar bem e com dignidade no lugar que ela escolheu viver: o Semiárido. “Veja só, não chove [com regularidade] em Alagoas, mas também não chove em Vertentes. No entanto, Estefany tem acesso à água através da cisterna, à segurança alimentar através da sua plantação, das suas plantas medicinais, ou seja, não falta nada nesse lugar para ela, que é o que a gente espera que aconteça com as outras tantas famílias do Semiárido brasileiro”, explica.
No Semiárido brasileiro, 1 milhão e 200 mil famílias conquistaram o Direito Humano à água, por meio da mobilização deflagrada pelas mais de 3 mil organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que traçou como meta a construção de 1 milhão de cisternas na região e dando origem ao Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Quando o P1MC surgiu, resgata o coordenador do programa Rafael Neves, “foi para resolver, não como um todo, mas os principais problemas do Semiárido que eram: a morte de milhares de crianças por inanição e o fato de que uma mulher perdia 36 dias no ano para conseguir água, ficando impossibilitada de realizar outras atividades.”
Ainda segundo ele, entre as décadas de 1970 e 1980, houve uma grande estiagem que provocou milhares de mortes na região. Nessa direção, a ASA criou o programa para levar acesso à água às famílias, que, de forma autônoma, poderiam suprir as suas necessidades básicas na região. A cisterna, que foi abraçada pelo Governo Federal e passou a ser disseminada como política pública, por meio do Programa de Cisternas, surge como “uma tecnologia social, que possui baixo custo, fácil aplicabilidade e envolve o engajamento da comunidade em sua construção”, explica Rafael.
O programa impactou positivamente nas vidas das famílias do Semiárido, com ênfase especial às mulheres, principais afetadas pela falta de acesso à água de consumo humano. Em 2017, a iniciativa conquistou o troféu de prata do Future Policy Award 2017, ou Prêmio Política para o Futuro, concedido pela World Future Concil e considerado o Oscar das Políticas públicas.
Entretanto, ainda hoje, outras 1 milhão de famílias ainda convivem na região sem acesso à água de consumo humano. O atendimento a essas famílias segue lento devido à redução de recursos no Programa Cisternas nos últimos quatro anos. “Nós conseguimos ainda aqui na comunidade quatro cisternas, só que a minha não veio dessa vez”, lamenta Suzana. De acordo com a técnica da Cactos, Joelma Soares, o município de Mata Grande possui uma demanda de mais de 1 mil cisternas de água para consumo humano, porém, devido a redução de recursos, a Cactus só construiu 100 unidades.
Segundo o coordenador do P1MC, Rafael Neves, hoje, “o programa enfrenta um total descaso por parte do poder público. Foram pequenas ações, ações que o governo tem privilegiado no nível da politicagem, que é isso que ele tem feito, opta por estados, municípios e organizações do seu gosto. E não executando o dinheiro público tal como tem que ser para os lugares que mais necessitam e com as organizações mais capazes de executar o recurso”, critica.
Na avaliação de Edna Jatobá, quando o Estado deixa de empreender recursos em uma política que garante um bem essencial à sobrevivência humana, está ferindo os Direitos Humanos. “Chega a ser uma ação criminosa, a gente tá falando de famílias que não tem acesso a condições de sobreviver com dignidade, são abandonadas pelo poder público, sem o bem mais vital e valioso que é a água”, conclui.
Rafael reforça que “garantir o acesso à água é garantir o mínimo de dignidade para uma família. É inaceitável uma nação com o tamanho do Brasil, com o PIB do Brasil, ter pessoas que não têm acesso à água para o consumo humano”, sentencia. Para retomar as construções de cisternas no âmbito do P1MC, a ASA lançou em setembro de 2021, a Campanha Tenho Sede, visando arrecadar recursos de doadores/as individuais e de Companhias de Abastecimento e Saneamento de alguns estados da região Nordeste.
Em seu lançamento, a campanha ganhou o apoio do cantor Gilberto Gil, que regravou a canção Tenho Sede, composta por Dominguinhos e Anastácia, e no lançamento do clipe conclamou o apoio da população ao P1MC, por meio da doação de recursos para a construção de cisternas para as famílias do Semiárido no âmbito da campanha. Após quatro meses de lançamento, a campanha já conquistou a adesão de doadores/es em todas as regiões brasileiras e também fora do país. Para conhecer mais sobre a iniciativa ou para realizar uma doação, acesse aqui.
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Acesso à água no Semiárido: uma questão de Direito Humano, uma prioridade para 2022 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU