05 Janeiro 2022
"Tendo crescido em uma época em que direitos e dignidade eram regularmente pisoteados pelo regime soviético, penso que as nossas igrejas podem e devem desempenhar um papel essencial na defesa desses valores cristãos em praça pública. Num mundo cada vez mais fragmentado, somos chamados a discernir a vontade de Deus em situações complexas e a ser agentes de mudança positiva e de reconciliação. Como cristãos, devemos primeiro passar das palavras às ações, respondendo à vontade de Cristo por unidade e cuidado em nosso mundo despedaçado", escreve a reverenda Anne Burghardt, da Igreja Evangélica Luterana da Estônia, teóloga e pastora, e primeira mulher eleita como Secretária Geral da Federação Luterana Mundial, em artigo publicado por Donne Chiesa Mondo, janeiro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Anne Burghardt, a primeira mulher Secretária Geral. Reverenda Anne Burghardt, da Igreja Evangélica Luterana da Estônia, é a primeira mulher, assim como a primeira pessoa originária da região da Europa Central e Leste, a ser eleita Secretária Geral da Federação Luterana Mundial. Teóloga e pastora, começou seu mandato em novembro de 2021, substituindo o reverendo Martin Junge, que esteve na liderança da comunhão mundial de 148 igrejas luteranas desde 2010.
Burghardt, 46, esposa e mãe de dois filhos biológicos e de um refugiado palestino adotivo, reflete sobre seu caminho para a liderança e sobre os dons especiais que espera trazer para seu trabalho.
Meu país, a Estônia, é conhecido como uma das nações mais seculares do mundo, então um dos dons que certamente trarei será a experiência de compartilhar a palavra de Deus com as pessoas em sociedades seculares.
Nasci em 1975, durante a ocupação soviética, e cresci em um ambiente familiar leigo.
Meus avós foram membros ativos da Igreja Luterana; em 1949, minha avó foi deportada para a Sibéria junto com meu pai e minha tia. Como muitos outros que passaram por esse tipo de experiência, meus avós hesitaram em envolver ativamente os filhos na vida da Igreja, pois se preocupavam com as consequências que isso poderia ter em um estado agressivamente ateu.
Foi o convite para a confirmação de um amigo de colégio que me conduziu para o caminho da ordenação - um caminho em que eu dificilmente acreditaria se alguém o tivesse sugerido há 30 anos! Minha escola era uma das poucas que na época oferecia cursos de educação religiosa, e as discussões com meus colegas de classe acenderam uma faísca dentro de mim. Todos buscavam uma identidade, tanto nacional quanto pessoal, e comecei a me interessar cada vez mais por questões religiosas.
Olhando para trás em minha jornada de fé, eu diria que alguns vivenciam um caminho de crescimento natural em uma família cristã tradicional. Alguns têm uma conversão repentina, como o apóstolo Paulo. Depois, há outro caminho, que é o meu, de crescimento lento através de muitas perguntas, avançando passo a passo, enraizando-se cada vez mais na fé. Em 2004, dez anos depois daquele convite recebido de meu amigo de colégio, fui ordenada pastora na Catedral de Santa Maria em Tallin, porque senti que queria servir a Igreja com os dons que me foram dados.
Nesse ínterim, havia estudado teologia na antiga universidade de Tartu, passando também por Berlim e Baviera, onde havia preparado meu doutorado no estudo das liturgias ortodoxas.
Eu só tinha a formação pastoral, mais tarde lecionando no Instituto de Teologia de Tallin, que inclui uma cadeira de teologia ortodoxa, um raro exemplo de cooperação ecumênica de alto nível em uma instituição acadêmica eclesiástica. Devido ao meu interesse pelo mundo ortodoxo, tornei-me membro da primeira comissão de diálogo luterano-ortodoxo na Estônia e participei da Comissão conjunta luterano-ortodoxa global. Em seguida, trabalhei por cinco anos como secretária para as relações ecumênicas na sede da Federação Luterana Mundial em Genebra, supervisionando o diálogo com os anglicanos e os menonitas, bem como, posteriormente, com os cristãos ortodoxos e os pentecostais.
Durante aquele período, também ajudei a coordenar os preparativos para o 5º centenário da Reforma, que viu o Papa Francisco orar ao lado de líderes luteranos na cidade sueca de Lund, onde a Federação Luterana Mundial foi criada em 1947. Considero que, apesar de ser uma comunhão confessional de Igrejas, a Federação Luterana Mundial sempre foi muito comprometida com a unidade dos cristãos, e sua constituição foi fortemente influenciada pelo movimento ecumênico mais amplo do início do século XX. Cada comunhão cristã contribui com seus próprios dons especiais para a Igreja global e, assim a nossa tradição luterana também dá sua contribuição ao enfatizar a centralidade da graça incondicional de Deus e a liberdade que dela flui.
Outra característica dos Reformadores foi a importância atribuída à educação para compartilhar o evangelho e encorajar o pensamento crítico; são princípios centrais também para minha compreensão pessoal da missão da Igreja no mundo contemporâneo. Uma das maiores inovações durante o período que fui diretora de desenvolvimento no Instituto de Teologia de Tallin foi a instituição de um mestrado em "Estudos da Cultura Cristã". O curso foi concebido como “missão acadêmica” para quem trabalhava no mundo leigo, mas queria entender um pouco mais sobre sua história e tradição cristã.
O programa teve grande sucesso, com base no legado do Instituto de Teologia que permaneceu aberto durante todo o período soviético. Naqueles anos, o Instituto ofereceu formação acadêmica que garantiu que os pastores estivessem preparados para pensar de maneira diferenciada, não apenas em preto e branco. Hoje, enquanto muitas sociedades enfrentam uma polarização crescente, é essencial que a Igreja não apoie um paradigma preto e branco, mas sim reflita uma forma de pensar mais diferenciada. Um dos meus objetivos é fortalecer a rede de educação teológica e de formação da Federação Luterana Mundial, tornando o material amplamente disponível para os estudantes que não têm acesso aos recursos e à formação ao pensamento crítico. Ao fazer isso, espero poder compartilhar em parte minha experiência de pesquisa e formação em vários campos, incluindo a resolução de conflitos, a assistência psicológica no âmbito do HIV e desenvolvimento das comunidades nas áreas rurais.
Outro objetivo meu é ampliar o debate teológico sobre a compreensão luterana da ordenação para apoiar aquelas igrejas que estão se movendo em direção à inclusão das mulheres no ministério ordenado e nas posições de liderança. Como a primeira mulher a liderar a Federação Luterana Mundial, acho que em muitas regiões e em muitas de nossas Igrejas existem mulheres que se sentem encorajadas pelo meu exemplo. Na Estônia, as primeiras mulheres foram ordenadas pastoras há mais de meio século, mas acredito que minha nomeação marca um momento histórico para nossa Igreja e para a nossa região. Ao mesmo tempo, porém, aguardo o dia em que o gênero não será mais um tema no debate sobre posições de liderança em nossas igrejas ou na sociedade.
Entre as principais tarefas que terei que enfrentar como nova Secretária-Geral está a supervisão dos preparativos para a próxima Assembleia da Federação Luterana Mundial, prevista para Cracóvia em setembro de 2023 e centrada em “Um só corpo, um só espírito, uma só esperança". Junto com o trabalho teológico e ecumênico, uma orientação deve ser estabelecida para o braço assistencial e de desenvolvimento da Igreja, conhecido como LWF World Service. Operando em 27 países, muitas vezes em lugares isolados e de difícil acesso, nosso Serviço Mundial é conhecido por seu trabalho humanitário profissional, que constitui um vínculo entre as comunidades locais e a tutela internacional da justiça, da paz e da dignidade humana, especialmente para os mais vulneráveis.
Por muitos anos, temos sido um dos principais parceiros confessionais operacionais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e trabalhamos em estreita colaboração com vários parceiros ecumênicos, entre os quais a Caritas Internationalis, bem como com outros grupos confessionais como o Islamic World Relief. A situação dos refugiados, que já preocupava os fundadores da Federação Luterana Mundial após a Segunda Guerra Mundial, continua sendo ainda hoje uma de nossas principais preocupações no trabalho com as comunidades vulneráveis. Existem atualmente mais de 80 milhões de pessoas no mundo deslocadas internamente ou forçadas a fugir de seu país devido a conflitos, pobreza, perseguição ou crise climática.
Ao mesmo tempo, constatamos o surgimento de regimes autoritários, lentidão nas ações adotadas pelos estados para reduzir o impacto das mudanças climáticas e relutância em respeitar os direitos humanos, especialmente os direitos das mulheres. Outra preocupação é a persistente disparidade no acesso à vacina contra a Covid no mundo, bem como o fato de que as próprias vacinas estão cada vez mais sendo transformadas em uma arma de uma guerra de desinformação, aumentando a polarização existente e as teorias de conspiração.
Como Federação Luterana Mundial, continuamos nos empenhando por soluções justas e de longo prazo que sejam coerentes com os objetivos de desenvolvimento sustentável, que enfrentem as causas que estão na base da pobreza, para que todos possam desfrutar de seus direitos e viver uma vida digna.
Tendo crescido em uma época em que direitos e dignidade eram regularmente pisoteados pelo regime soviético, penso que as nossas igrejas podem e devem desempenhar um papel essencial na defesa desses valores cristãos em praça pública. Num mundo cada vez mais fragmentado, somos chamados a discernir a vontade de Deus em situações complexas e a ser agentes de mudança positiva e de reconciliação. Como cristãos, devemos primeiro passar das palavras às ações, respondendo à vontade de Cristo por unidade e cuidado em nosso mundo despedaçado.
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Teologia e Justiça. Artigo de Anne Burghardt, secretária-geral da Federação Luterana Mundial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU