02 Dezembro 2021
"A hierarquia e o Papa estão cientes desta situação e também por isso colocaram uma focinheira nos movimentos, limitaram a sua liberdade e o seu campo de ação, sem os sufocar completamente", escreve Marco Marzano, sociólogo italiano e professor da Universidade de Bergamo, em artigo publicado por Domani, 01-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O estado de saúde e o futuro dos chamados movimentos eclesiais representam uma questão de capital importância para todo o mundo católico. Após uma longa fase de expansão dentro da sociedade e da igreja, essas organizações parecem ter se encaminhado por um caminho em íngreme declive.
Entre as causas do declínio podem ser enumeradas também as tentativas de normalização desses grupos implementadas pelas hierarquias vaticanas e pelo Papa Francisco a fim de limitar os danos associados à sua presença na vida da instituição.
Chamou a atenção sobre o tema o livro de Ferruccio Pinotti La setta divina. Il movimento dei focolari tra misticismo, abusi e potere (A Seita Divina. O movimento dos focolares entre misticismo, abuso e poder, em tradução livre, Piemme 2021, 496 páginas). O livro joga os refletores sobre os focolares, importante organização do laicado católico fundada por Chiara Lubich.
Pinotti conduziu um trabalho de investigação aprofundada, examinou uma quantidade considerável de documentos, ouviu muitas vozes, reconstruiu a história do grupo e traçou o perfil cultural, político e humano de seus líderes.
A imagem que emerge das 500 páginas do livro é bastante clara: a fundadora Lubich teria sido uma narcisista megalomaníaca convencida de ser praticamente Jesus Cristo, a organização consistiria, no topo, de um grupo de poder implacável e eficientíssimo, capaz de se infiltrar nos gânglios da política e gerar consideráveis fortunas econômicas, na base de sistemáticas humilhações, abusos de vários tipos, violências psicológicas, manipulação da consciência e assim por diante.
As vítimas de tudo isso teriam sido aqueles que, encontrando-se em condições de particular fragilidade existencial, seja por um luto difícil de elaborar, seja por uma desgraça econômica ou mais simplesmente pela presença de necessidades afetivas não satisfeitas, deixaram-se persuadir a se juntar ao grupo e a sacrificar a ele toda a sua existência.
Sua pureza, a candura com que se aproximaram aos focolares, a autenticidade e a profundidade da sua busca espiritual representam a única coisa limpa que parece resultar das tantas entrevistas, dos milhares de testemunhos recolhidos por Pinotti.
Os comportamentos dos líderes da organização foram muito diferente, preocupados sobretudo em não danificar a potentíssima máquina construída por Lubich, e por isso habituaram-se a toda manobra, inclusive para encobrir durante anos os delitos de um dirigente francês do movimento, um abusador sexual serial de menores.
A fisionomia cultural e política dos focolares não é particularmente original, visto que se assemelha de maneira impressionante àquela de todas as outras organizações católicas que surgiram após o Concílio Vaticano II: Comunhão e Libertação, Neocatecumenais, Renovação no Espírito, etc.
No funcionamento de todos esses grupos - e de muitas outras seitas religiosas não católicas - encontram-se, de fato, com algumas pequenas variações, os sintomas que Pinotti descreveu para os focolares.
Nas conclusões do livro, o jornalista questiona-se sobre a estratégia do papa em relação a eles.
Como Bergoglio se moverá? Qual será o lugar desses grupos na igreja do futuro? Ao responder a essas perguntas, Pinotti destaca uma ambiguidade básica na atitude do pontífice.
De fato, por um lado, ele tem repetidamente advertido esse e outros "movimentos eclesiais", chegando em alguns casos - por exemplo, o dos Memores Domini – à intervenção e, em todo o caso, estabelecendo para todos um limite máximo para a duração da liderança.
Por outro lado, o pontífice argentino, apoiou sem hesitar a beatificação de Lubich, e recebeu em setembro deste ano com grande pompa uma ampla representação de bispos ligados ao movimento e elogiou pública e solenemente a "espiritualidade do nós" dos focolares.
Para entender as manobras do Papa, é preciso dar um passo para trás. Nas primeiras décadas após a conclusão do Concílio Vaticano II - ocorrido em 1965 - os chamados movimentos representaram a mais vigorosa fonte de energia gerada dentro do catolicismo, pelo menos na Europa.
Esses grupos pareceram por muito tempo - e não só para João Paulo II, mas para toda a hierarquia - os únicos capazes de travar o triste declínio das paróquias trazendo multidões de jovens entusiasmados, repovoar os seminários em via de desertificação, produzindo muitas novas vocações sacerdotais, reanimar a vida dos mosteiros e incentivar o impulso para as missões.
Nos últimos tempos, porém, as coisas mudaram. Por outro lado, os movimentos perderam muito de seu ímpeto, têm dificuldades para recrutar novos membros e estão mostrando preocupantes sinais de desgaste (para seus líderes).
Determinante para as dificuldades foi, em alguns casos, a morte do líder, um evento sempre muito delicado para um grupo carismático, em outros, a superveniente inadequação de mensagens e filosofias muito afetadas pelo tempo em que nasceram e que rapidamente se tornaram anacrônicas.
Vivemos em tempos de mudanças sociais muito rápidas e linguagens que pareciam ter frescor, ser inovadoras e revolucionárias nos anos 1970 hoje parecem ultrapassadas e pouco sedutoras. Às vezes, os dois elementos se sobrepuseram.
Vejamos o caso de Comunhão e Libertação, que atravessa uma fase de assustador desvio tanto porque foi guiada, durante quinze anos e até sua recente renúncia, não pelo fundador Luigi Giussani, mas por seu sucessor Julián Carron, quanto por sua filosofia agressiva, e sua linguagem, no estilo da reconquista católica modelada na época da Guerra Fria e do anticomunismo militante, não consegue mais se inserir entre os jovens conservadores italianos, hoje atraídos, no máximo, pelo nacionalismo populista.
O outro fator que enfraqueceu enormemente os movimentos e que levou Bergoglio a colocá-los sob tutela é constituído pela recente sensibilidade mais acentuada para com os abusos de qualquer tipo - sexuais, espirituais, psicológicos, nem todos puníveis por lei - cometidos dentro das organizações católicas.
Os abusos são consubstanciais à vida dos movimentos porque são uma consequência inevitável do caráter totalitário dessas organizações, da debilidade psicológica de muitos membros, dos laços estreitíssimos que se estabelecem entre todos e sobretudo do poder absoluto que é concedido dentro deles a chefes e chefetes, muitas vezes capazes de apoderar-se da vida de seus subordinados e dirigi-las ao seu belo prazer.
Tudo isso gera várias formas de abuso que antes eram toleradas e silenciadas, mas que hoje acabam sob os holofotes da opinião pública, em um tribunal ou nas páginas de um livro como o de Pinotti.
A tradicional atitude reverencial de magistrados e jornalistas para com a igreja, a timidez com que acontecimentos como o do grupo fundado por Lubich eram trazidos à tona, estão dando lugar ao desejo de conhecer o que realmente acontece dentro da igreja, quando nos encontramos diante de violência, manipulações ou abusos, e à pretensão de obter justiça.
A hierarquia e o Papa estão cientes desta situação e também por isso colocaram uma focinheira nos movimentos, limitaram a sua liberdade e o seu campo de ação, sem os sufocar completamente. Há uma última pergunta a ser respondida.
É a que Pinotti evoca nas conclusões do livro, citando as palavras do conhecido economista católico e focolar, muito próximo do Papa, Luigino Bruni: “É possível dar vida a comunidades compostas por pessoas livres e autônomas evitando o colapso da própria comunidade?
A pergunta não é retórica, porque toca no primeiro vulnus das comunidades de ontem, que para sobreviver como comunidades tiveram que reduzir a autonomia de seus membros”.
É uma questão que interessa todo o mundo católico, e que diz respeito também ao destino do monaquismo, como ilustra o livro de Riccardo Larini La traccia del Vangelo (O rastro do Evangelho, em tradução livre), dedicado à história de Bose. A resposta requer uma reflexão atenta e nada simples.
O certo é que, no máximo, caso as comunidades que Bruni imagina - leigas, pluralistas, de baixa intensidade, respeitadoras da autonomia individual - viessem a surgir, nunca se poderá pedir a elas que façam o trabalho que fizeram nestes sessenta anos os movimentos, isto é, reanimar as paróquias, encher os seminários e ocupar as praças com os vários Family Days convocados a cada oportunidade pelas hierarquias.
Essas coisas, com certeza, as novas comunidades não fariam. E talvez nem seriam tão interessadas em definir-se ou sentir-se católicas, bastando-lhes a palavra do Evangelho e o desejo de partilhar uma pequena e circunscrita parte da sua vida. Seria realmente uma revolução.
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Na igreja do Papa Francisco, os movimentos estão parando - Instituto Humanitas Unisinos - IHU