30 Novembro 2021
"Tão atual quanto o tema da fome e da miséria é a obra de Carolina. A pandemia da Covid-19, especialista em rasgar véus e máscaras, escancarou e agravou a situação trágica da multidão de trabalhadores e trabalhadoras em situação vulnerável", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM / São Paulo.
A frase é extraída do livro Quarto de despejo – diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, hoje considerado um clássico da literatura brasileira. “E assim”, diz mais adiante a autora, “no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravidão atual – a fome”. Alusão crítica à Lei Áurea, sobre a abolição da escravatura, promulgada pela Princesa Isabel em maio de 1888. No combate árduo e diário contra a pobreza, a carência e a fome, tem razão a escritura ao concluir que “duro é o pão que nós comemos, dura é a cama que dormimos, dura é a vida do favelado”. De fato, no dia-a-dia do seu doloroso diário, a fome crônica e a busca cotidiana pelo que comer ocupam praticamente cada parágrafo.
Tão atual quanto o tema da fome e da miséria é a obra de Carolina. A pandemia da Covid-19, especialista em rasgar véus e máscaras, escancarou e agravou a situação trágica da multidão de trabalhadores e trabalhadoras em situação vulnerável. Os números se revelam clamorosos: mais de 13 milhões de desempregados, 40 milhões disputando as migalhas do mercado informal, e 6 milhões de desalentados (que desistiram de procurar emprego). Na passagem do coronavírus pelo território nacional, com seu flagelo e seus efeitos catastróficos, com seu rastro de mortos e enlutados, quase metade da população sofreu algum tipo de insegurança alimentar. Saíram dos esconderijos e desfilaram pelas ruas e praças os rostos desfigurados de “pobres e excluídos, de invisíveis e descartáveis”, seguindo o funesto mantra do Papa Francisco.
Não é ocioso perguntar por que, em terras de santa Cruz, esse inimigo sutil e letal causou uma devastação tão deprimente? Estudiosos interdisciplinares descortinam múltiplas e diferenciadas explicações. Entre elas, cabe ressaltar o conceito de liberalismo autoritário. De fato, de um lado, o Ministério da Economia tem no comando da gestão ninguém mais e ninguém menos do que o ministro Paulo Guedes, um “Chicago Boy”, descendente direto do pensamento liberal de Milton Friedman. De outro lado, no comando da nação, está o presidente da República, Jair Bolsonaro, à imagem e semelhança da ditadura militar. Ou melhor, sua herança perversa representa o que há de mais retrógrado e autoritário na extrema-direita, proveniente dos túmulos cruéis e fétidos da história, envernizado com um discurso nacional populista.
O cenário não poderia ser mais contraditório e paradoxal. Enquanto o capitão, ambiciosamente, mira as eleições de 2022, procurando, a qualquer custo, raspar os cofres públicos na tentativa de inverter a curva da popularidade e acumular votos, o ministro da economia, como fiel discípulo de Friedman, pensa, bem ou mal, numa política austera de gastos públicos. Essa rota de colisão seria inevitável: o primeiro, com o velho e famigerado jogo “toma-lá-dá-cá”, faz o possível e o impossível para distribuir emendas parlamentares e auxílios emergenciais; o segundo, embora aluno exemplar da escola de Chicago, mas atropelado pelas consequências da pandemia e pela proximidade do processo eleitoral, vê-se obrigado a implementar um programa keynesiano. John Keynes! Exatamente o inverso do que poderia ter sonhado um “Chicago Boy” para uma gestão de política econômica liberal, ou neoliberal.
Por que não ocorre a colisão? Porque o ministro, seguindo a via de outros antes dele, se dobra ao chefe supremo. E ambos, na contramão das metas fiscais e dos indicadores econômicos em geral, marcham de bandeira levantada para as urnas. Mais fácil e menos laborioso desenhar as linhas de medidas imediatistas do populismo nacionalista do que elaborar políticas públicas de longo prazo. Como diria alguém, as próximas eleições prevalecem sobre as necessidades das próximas gerações. Em lugar de bases estruturais para uma retomada robusta e sólida da nave Brasil, melhor os aplausos ruidosos do “pão e circo”. Para os pobres subempregados, a quem Carolina Maria de Jesus reservava os olhares e palavras mais doces e ternos, a luta cotidiana conta a fome não tem trégua. “A fome é também professora”, sem dúvida, mas uma mestra desconhecida ou desconsiderada por quem, governo após governo numa passou por ela.
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A fome também é professora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU