30 Novembro 2021
"Em sua missa das 11h aos domingos o espaçoso templo ficava repleto, e muitas vezes defendeu em seus sermões os presos e perseguidos políticos e denunciou o arbítrio que governava o Brasil. Ainda que poucos paroquianos tentassem intimidá-lo, jamais abdicou de sua postura profética na defesa dos direitos humanos", lembra Frei Betto, escritor, autor de 70 livros, entre eles, “Ofício de escrever” (Rocco).
Frei Cláudio, frade carmelita, era o pároco da igreja do Carmo, vizinha à casa de minha família em Belo Horizonte, e na qual fiz catequese. Esguio, alegre, sempre com uma nova piada na ponta da língua, este holandês de alma brasileira cativava todos que o conheciam. Na conversa, falava em frases curtas, terminadas por interjeições interrogativas, e seu olhar luzidio em busca da concordância do interlocutor expressava reticências. “Han?... hein?...”
Durante os anos em que estive preso pela ditadura militar, ele foi um dos meus anjos da guarda, ao lado de seu confrade Carlos Mesters. Suas cartas eram frequentes, e as respostas estão registradas em minhas “Cartas da prisão” (Companhia das Letras, 2017).
Em sua missa das 11h aos domingos o espaçoso templo ficava repleto, e muitas vezes defendeu em seus sermões os presos e perseguidos políticos e denunciou o arbítrio que governava o Brasil. Ainda que poucos paroquianos tentassem intimidá-lo, jamais abdicou de sua postura profética na defesa dos direitos humanos. Trazia nos olhos da memória a visão de homens, mulheres e crianças que, durante a ocupação da Holanda pelos nazistas, passavam famintos e sedentos pela pequena propriedade rural da qual seus pais tiravam o parco sustento da família.
Tinha-se a impressão de que era um homem onipresente. Visitava com frequência os paroquianos, ainda que não fossem católicos. Inúmeras vezes almoçou e lanchou na casa de meus pais, na esquina das ruas Major Lopes e Padre Odorico. Adorava as frutas do Brasil, que jamais havia conhecido em sua infância na Holanda. Vi-o fatiar e comer, sozinho, dois suculentos abacaxis.
Sempre o tive na conta de pároco modelo. Imprimiu um dinamismo na paróquia do Carmo raramente encontrado em outras. Com a colaboração de voluntários, mobilizados por sua contagiante simpatia, dotou-a de ambulatório e serviço de assistência jurídica, cursos profissionalizantes e rede de apoio aos moradores das favelas vizinhas, além de outras atividades.
Escritor compulsivo, trafegava com desenvoltura da liturgia à Bíblia, de temas comportamentais aos espirituais, e coletava a sabedoria contida em frases gravadas na traseira de caminhões, com as quais publicou um livro.
Formado em Psicologia, aprimorou em Roma sua formação teológica. Seus sermões, acentuados de bom humor, e até mesmo de “causos” de fazer beatos se arrepiarem, destoavam da ortodoxia. Não fazia pregações abstratas, e sim conectadas com a realidade, incisivas, contundentes. Seu comportamento heterodoxo provocou a ira de católicos conservadores que recorreram às altas instâncias eclesiásticas para que frei Cláudio fosse calado ou afastado da paróquia. A indignação causada pela proposta, inclusive junto a ateus e não paroquianos que tanto o admiravam, suscitou massiva mobilização que o manteve no Carmo.
Nos últimos anos, o Alzheimer privou-o progressivamente da memória. De nosso último encontro, no jardim da casa paroquial, guardo o seu sorriso cândido e o fulgor afetuoso de seus olhos azuis. Há pouco, recolhido ao hospital, contraiu Covid. Aos 88 anos, transvivenciou.
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Frei Cláudio Von Balen. Artigo de Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU