17 Novembro 2021
"O “negacionismo” é a forma ideológica que galvaniza a “vontade coletiva” dos que rejeitam seletivamente o conhecimento científico e relativizam o valor da vida", escreve Marcelo Seráfico, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e coordenador do PPGS/UFAM, em texto apresentado na mesa-redonda Os desafios da pesquisa científica em tempos de pandemia: a perspectiva das ciências humanas, da qual fazem parte, também, a Profa. Jocélia Barbosa (Pedagogia) e o Prof. Enio Tavares (Psicologia) no XXX Congresso de Iniciação Científica da UFAM, 11-11-2021.
Em fevereiro de 2020, passamos a viver, nós da UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e todo o mundo, um grave problema de saúde pública global, o espraiamento de um vírus que contaminou, até hoje, cerca de duzentas e cinquenta milhões de pessoas em todos os continentes do planeta, das quais mais de cinco milhões não resistiram, seiscentas mil destas no Brasil.
Desde o primeiro momento da identificação do problema, combatê-lo revelou-se um desafio político de escala planetária a ser enfrentado de modo sistemático e articulado entre os vários Estados nacionais e a Organização Mundial de Saúde. Reconheceu-se, portanto, que a Covid-19 era e é um problema de saúde pública, sim, mas também uma questão de política pública e de política, em sentido mais amplo, mundial.
O tema e as condições nas quais o tratamos aqui são atestados da dimensão e profundidade do problema. Dos momentos iniciais da pandemia aos atuais, os esforços de cientistas de todas as áreas foram mobilizados com vistas a descobrir a origem do vírus, suas formas de contágio, seus sintomas no corpo humano, seus efeitos sobre a saúde física e emocional das pessoas; identificaram-se, a partir disso, as estratégias para evitar o contágio, para erradicar o vírus e os critérios para o retorno à “vida normal”. Em síntese, mobilizou-se em escala mundial uma “vontade coletiva” dirigida para a devida caracterização do problema e para sua resolução.
Hoje, as polêmicas em torno do distanciamento social, do uso do álcool em gel e da eficácia das vacinas contra Covid-19 persistem apenas nos meios em que viceja o que passamos a chamar de “negacionismo”, uma resistência sociopática à mudança. Uma resistência à mudança nas condutas individuais cujos impactos são coletivos, isto é, sociais.
O “negacionismo” é a forma ideológica que galvaniza a “vontade coletiva” dos que rejeitam seletivamente o conhecimento científico e relativizam o valor da vida. Ainda que se possa dizer que ele corresponde a uma perspectiva de classe, parece inegável que domina a consciência de grupos e camadas que, mesmo minoritários, põem em risco os que buscam minimizar os impactos do problema ou solucioná-lo, e não o negar.
Portanto, um dos maiores problemas para nós, hoje, me parece ser o negacionismo seletivo, essa forma canhestra de negar da ciência aquilo que é visto como inconveniente ou desconfortável, por razões as mais variadas. Razões que vão desde uma desconfiança acerca do próprio conhecimento científico, até a pura e simples aversão à função crítica que compete aos cientistas.
É preciso dizer, a crítica implica uma atitude intelectual de observação metódica da realidade, com vistas a compreendê-la e explicitar as características dos processos relações e estruturas que a constituem, assim como de apontar os limites e potencialidades dessa realidade para a emancipação de indivíduos e coletividades.
O avanço da pandemia no Brasil, nos colocou diante de um questionamento da própria função da ciência e dos cientistas, isto é, do lugar da dúvida, da construção dos meios para responder a ela a partir de critérios de objetivação, e das perspectivas emancipatórias resultantes.
Pondo o problema dessa maneira, quero acentuar o fato de que o negacionismo seletivo é uma tentativa de invalidação daquelas áreas de estudo e investigação cujos conhecimentos geram desconforto ou soam inconvenientes para alguns grupos, camadas e classes sociais. Desconforto e inconveniente decorrentes do esclarecimento promovido pelo conhecimento científico. Desconforto e inconveniente que, tratados pelos critérios da “dúvida metódica”, poderiam gerar mais esclarecimento; mas vividos como sofrimento psicológico ou desafio ideológico se projetam em várias formas de violência. José Alcimar de Oliveira, professor do Departamento de Filosofia desta Universidade, sugere que se reflita sobre o embate entre negacionismo seletivo e conhecimento científico como o embate entre dois regimes da consciência:
No regime do espírito científico, a consciência se move pela dúvida rumo à possibilidade de objetivação da realidade. No regime do negacionismo, a consciência é imobilizada pela crença e se deixa aprisionar pelo que necessariamente foi levado a acreditar. Na primeira, o sujeito tenta, por meio de mediações cognitivas, se apossar do objeto. Na segunda, torna-se, numa relação imediata, possuído pelo próprio objeto da crença.
Isso, evidentemente, não deve ser confundido com uma espécie de absolutização da ciência, de transformação dela na razão última ou exclusiva a guiar a vida das pessoas. Nem que se pretendesse isso seria possível, pois nossas vidas são embebidas de afeto, expectativas, sonhos, devaneios e ilusões. Afetos, expectativas, sonhos, devaneios e ilusões que nutrem nossas relações com as outras pessoas, sejam elas relações de produção de conhecimento científico ou não. É o conjunto dessas relações que nos constitui como sujeitos, como cidadãos que exercem, no caso de instituições de ensino, a função específica de ensinar, aprender, investigar e compartilhar análises, interpretações, inquietações e preocupações. Mas com isso não deixamos de ser filhos, filhas, pais mães, amigos, amigas, homens, mulheres, jovens, adultos ou tantas outras formas de representar nossos loci sociais.
Isso reveste a vida das universidades do imperativo da empatia, da identificação com o outro, da necessidade de estimular a sensibilidade para as questões, os impasses e os dilemas que constituem a vida social. Um imperativo que se alimenta da dúvida, da história e das teorias, mas também, quero crer, do compromisso com a construção de uma universidade democrática para uma sociedade em que a democratização permanece sendo um grande desafio.
Não há nada mais estranho a essa atitude questionadora, empática e crítica do que a negação autoritária e infundada da ciência. Assim como não há nada mais estranho a uma universidade democrática do que as pretensões de hierarquização aristocrática do conhecimento.
Vimos, nesses dois anos, as desigualdades sociais imprimirem suas marcas, em caixa alta, em todos os lugares do mundo; cresceram e fizeram se aprofundar ainda mais o fosso, que já era inaceitável, separando os que controlam os meios de reprodução da sociedade e aqueles que os operam. Enfrentamos cotidianamente essa realidade. A realidade dos milhões de desempregados, precarizados e desalentados. A realidade que asfixia pela política de estrangulamento dirigida à maioria dos cidadãos. A realidade que, negando os conhecimentos críticos das ciências, acomoda e insufla ideologicamente muitos dos que são também objetos da tragédia. A realidade, em suma, que nos obriga a compreender os problemas, a buscar sua explicação e a contribuir para sua superação.
Não estou falando de algo distante das universidades, mas sim de situações que adquirem concretude nas condições objetivas e subjetivas sobre as quais forjamos nossas individualidades e nossa vida coletiva, dentro e fora do trabalho.
Sim, estamos todos desafiados a enfrentar a necessidade e as consequências do distanciamento social e da cara-metade que o acompanhou, a virtualização das relações sociais. E o fazemos sofrendo as perdas de pessoas queridas, o medo de nós mesmos nos perdermos, e ansiando pelo dia do “novo normal”, expressão corriqueira em 2020.
Esse enfrentamento se dá, também, diante de uma situação de múltiplas precariedades, algumas delas vindas do passado e agora aprofundadas. Outras, porém, novas, pois paridas pela asfixia orçamentária a que os maiores representantes do negacionismo seletivo têm submetido a quase totalidade das instituições de ensino e pesquisa.
As condições de vida de parte expressiva vida dos estudantes, técnico-administrativos e professores, cidadãos, têm sido depreciadas, aviltadas, sendo os aspectos específicos da realidade dos que fazem as universidades, uma dimensão de processo que atinge todos os trabalhadores de modo brutal.
A pandemia nos levou ao distanciamento social como forma de nos mantermos vivos. Mas não foi ela quem forjou o distanciamento, ou mesmo a ruptura, das relações entre os grupos de interesse que orientam as políticas do Estado brasileiro e as necessidades da maioria dos cidadãos, dentre os quais os que dão vigor, ânimo e sentido ao conjunto de edificações e tecnologias com as quais às vezes as universidades são confundidas.
Não bastasse o negacionismo seletivo, a sociedade e suas universidades também estão ameaçadas, agora ainda mais, pela “jaula de vidro”, pelas telas das quais transbordam, além de mentiras produzidas em escala industrial, as teias de racionalidade tecnocrática e burocrática que nos enredam e encerram em “processos”.
A pandemia acelerou o avanço da virtualização das relações sociais, dentre elas as de trabalho e, mais especificamente, as de ensino e pesquisa. Vemos mais pixel que olhos. Ouvimos áudios em formato digital, não vozes. Os cheiros são só os nossos. Os objetos que nos circundam são privados. Os gostos apenas de nossas cozinhas ou daquelas que nos chegam pelas telas.
Mudanças em nossas formas de sentir estão em pleno curso. Não são novas, é verdade, pois as redes ditas sociais se tornaram uma dimensão importante de nossas vidas há mais de uma década.
Mas a crise da economia capitalista combinada aos desdobramentos político-sociais da Covid-19, parecem ter criado condições para a expansão ainda maior da incivilidade, dos preconceitos, ódios e violências assentados no ressentimento e traduzidos no negacionismo. Ao mesmo tempo, o potencial de virtualização das relações sociais converteu-se em virtualização efetiva. O controle e a vigilância exercidos por governos e empresas, alargou-se enormemente. A situação que experimentamos nesse exato momento não me deixa mentir!
Por isso, me parece oportuno refletir sobre a condição da universidade em contraponto com a tragédia política, econômica e social brasileira, agravada pela pandemia. Por isso, também, me parece importante situar essa reflexão como parte das lutas pela democratização.
Os desdobramentos políticos, sociais e econômicos da pandemia tornaram incontornável essa discussão e espero que possamos fazê-la e aproveitá-la para inventar outra realidade, outra normalidade, cujos alicerces sejam uma vontade coletiva democrática, igualitária e emancipatória.
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A pandemia de Covid-19, a universidade e a democracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU