11 Novembro 2021
“A solução política para esta pandemia e as que virão não pode ser depositada em um otimismo tecnológico de curto prazo que coloque as vacinas como a panaceia exclusiva, mas requer uma reflexão radical sobre as condições de vida e a ciência que são produzidas em um mundo profundamente desigual e ecologicamente devastado”, escreve Laura Nuño de la Rosa, professora de Filosofia da Ciência, na Universidade Complutense de Madrid, em artigo publicado por Viento Sur, 05-11-2021. A tradução é do Cepat.
A pandemia de covid-19 manifestou a intrincada relação entre natureza e sociedade, bem como entre ciência, tecnologia e política. Este artigo não pretende oferecer uma reflexão profunda, mas uma introdução mais ou menos sistematizada de algumas das muitas questões éticas, morais e políticas que, de forma acelerada e ampliada, a pandemia colocou sobre a mesa.
Apresentarei essas questões agrupadas em três grandes seções. Na primeira, refletirei sobre a natureza socialmente construída da pandemia no contexto da globalização capitalista e a destruição do habitat. Na segunda seção, analisarei como a relação entre ciência e capitalismo se configurou nas diferentes fases de produção das ciências da covid.
Por último, esboçarei algumas considerações a respeito da reação social à ciência da pandemia, que incluirão tanto uma discussão sobre as fontes de autoridade científica, no marco dos movimentos anticiência, como uma reflexão sobre o modo como o conhecimento científico e a ação política se articulam e deveriam se articular em um horizonte emancipatório.
Em que sentido a pandemia pode ser considerada uma realidade natural e, ao mesmo tempo, socialmente construída? Nesta seção, abordaremos a necessidade de se pensar criticamente a dimensão social da pandemia, tanto em relação à sua gênese e evolução, como ao modo como a doença, atravessada pela desigualdade, se expressa nos corpos individuais (para uma análise mais profunda dessas questões, ver Nuño de la Rosa, 2021).
Hoje, sabemos quais plantas e animais foram originados da fusão de diferentes espécies microbianas e quais vírus e bactérias desempenham um papel essencial na regulação da saúde e dos ecossistemas (ver a entrevista com Máximo Sandín, em Lomeña, 2020). As epidemias, no entanto, não são consubstanciais à espécie humana. Seu surgimento é um fenômeno relativamente recente em nossa histórica evolutiva, associado ao crescimento e à concentração das populações humanas, com a sedentarização das primeiras sociedades agrícolas e pecuárias no Neolítico.
De fato, a disciplina de epidemiologia só nasce no século XIX, quando se desencadeia a guerra contra os micróbios e que, por sua vez, surge inextrincavelmente ligada às condições de aglomeração que acompanharam a industrialização (Latour, 1984). A pandemia de covid-19 é, no mesmo sentido, produto de uma época, a nossa, caracterizada pela globalização acelerada das relações sociais e econômicas e a destruição do planeta, derivada da lógica produtivista do capitalismo. Sem a destruição das fronteiras dos habitats selvagens, sem as enormes dimensões das concentrações humanas em espaços de lazer e transação econômica, sem a frequência acelerada das viagens transoceânicas, a gênese da pandemia não teria sido explosiva, nem sua propagação global e exponencial.
Nas últimas décadas, presumia-se que o progresso tecnocientífico havia gerado “transições epidemiológicas” que tinham libertado as sociedades desenvolvidas da ameaça das doenças infecciosas (Etxberría, 2021). Consideradas males produzidos pelas condições de insalubridade dos países pobres, há tempo a indústria farmacêutica tinha parado de investir no desenvolvimento de vacinas para se concentrar em doenças intrínsecas associadas ao aumento da expectativa de vida, como o câncer, as doenças cardiovasculares e o Alzheimer.
A pandemia de covid-19 desmascarou a ilusória pretensão de circunscrever geopoliticamente as doenças, revelando-se como o sintoma mais palpável do Antropoceno, a primeira época geológica definida pelo efeito estrutural das atividades de apenas uma espécie, a nossa. Conforme há tempo o ecossocialismo vem denunciando, a pandemia de covid demonstrou de forma dramática a falsidade da dicotomia entre natureza e sociedade, uma questão que, longe de ser meramente ontológica, revela dimensões práticas imediatas, e o fato de sermos produtores da natureza também destaca as vítimas e os responsáveis por essas ações.
Assim como acontece com todas as doenças, o modo como a covid nos atinge em cada uma de suas etapas (a saber, a própria probabilidade de adoecer, de apresentar um caso grave e de ter acesso a cuidados de qualidade) também depende do contexto social (Barea, 2021). Essa questão não é alheia à própria epidemiologia, que conta com um grande debate a esse respeito. Desde os anos 1980, a chamada epidemiologia dos fatores de risco, centrada nos fatores biológicos e comportamentais que explicam a doença, tem sido questionada a partir de abordagens críticas que buscam compreender a saúde atendendo ao contexto social, econômico, cultural, histórico e políticos das populações (Arrizabalaga, 2021).
Explorar as múltiplas dimensões nas quais cada uma das fases da doença de covid-19 e sua propagação foram afetadas por esses contextos exigiria vários artigos. Aqui, vamos nos limitar a explorar, de modo muito sucinto, como a vulnerabilidade diferencial frente à doença depende não apenas de fatores supostamente naturais, como a idade e o sexo, como também do modo como essas diferenças são socialmente construídas.
É que, apesar do mantra, repetido à exaustão, sobre a natureza democrática e não discriminatória do vírus, a variabilidade da incidência e as taxas de letalidade do covid por países, cidades e distritos, e até mesmo a fuga de grandes fortunas para regiões despovoadas em jatos privados (Helmore, 2020) manifestou a intrincada relação entre saúde e classe social, tecnologia e política. A forma como saúde e doença traduzem posições múltiplas e entrecruzadas de subordinação social se revelou, com um dramatismo particular, no caso da raça e o sexo/gênero.
Conforme a agência de saúde pública estadunidense registrou, a raça, entendida como uma realidade socialmente construída que, no entanto, tem efeitos materiais nos hábitos, comorbidades e acesso aos sistemas de saúde, teve um efeito devastador na vulnerabilidade diferencial, frente ao risco de infecção e morte por covid.
Do mesmo modo, a amplitude da variação geográfica e temporal nos índices de mortalidade por sexo indica que esta disparidade não pode ser compreendida como o resultado predeterminado da dotação cromossômica ou genital de homens e mulheres, mas que é preciso levar em consideração diferentes ocupações trabalhistas, estilos de vida e comorbidades associadas a tais hábitos (Richardson e Shattuck-Heidorn, 2020)
Se a pandemia é global e se manifesta de um modo diferencial que traduz as desigualdades sociais, a ciência que a aborda também reproduz as relações econômicas do capitalismo atual. No século passado, a ciência se consolidou como empresa global que transcende as fronteiras dos laboratórios e dos próprios Estados, dando lugar a redes científicas transnacionais que, sob um projeto comum, envolvem um grande número de pesquisadores de diferentes especialidades.
O Projeto Manhattan, destinado ao desenvolvimento de armas nucleares, durante a Segunda Guerra Mundial, ou o mais recente Projeto Genoma Humano, ambos liderados pelos Estados Unidos, são os grandes exemplos dos projetos big science que caracterizaram a ciência do século XX. Nesse sentido, já faz décadas que se abandonou a imagem ilustrada da ciência como um trabalho desinteressado, praticada por mentes incorpóreas que submetem à prova suas hipóteses, aplicando o método científico.
As comunidades científicas são muito mais concebidas como redes extensas que superam os confins dos laboratórios e também incluem agentes políticos e empresariais (Latour, 2005). As ciências da pandemia, e em particular a empresa internacional que colocou em marcha o desenvolvimento das vacinas contra a covid, delineiam uma nova configuração de ciência transestatal, não mais dirigida por governos, mas por oligopólios empresariais e, diante dos quais, acordos supranacionais como a Covax demonstram-se incapazes (Phillips, 2021a).
Nos últimos anos, a crescente dependência da ciência, não só de agências de pesquisa, mas, sobretudo, de empresas e fundações privadas, desencadeou a reflexão crítica sobre a suposta independência do conhecimento científico (Longino, 2019). É que os interesses privados não condicionam apenas a própria escolha dos fatos pesquisados. Quando a pesquisa científica é orientada para a comercialização de seus produtos, a própria maquinaria de produção do conhecimento científico (em particular, a precarização da mão de obra que faz a pesquisa) se vê profundamente afetada (Caro Maldonado, 2021).
Por outro lado, nas últimas décadas o conhecimento científico foi objeto de um crescente processo de privatização, tanto de sua própria expressão em forma de artigos científicos, como em sua aplicação em produtos tecnocientíficos. A indústria editorial lucra com a administração da publicação e o acesso aos resultados de uma ciência majoritariamente financiada com fundos públicos, do mesmo modo que a indústria farmacêutica governa o desenvolvimento e a distribuição de vacinas e medicamentos.
No caso das vacinas, embora o código de ética esteja bem estabelecido para a fase de desenvolvimento em relação aos ensaios clínicos, existe um total vazio em torno de sua distribuição, como tivemos a oportunidade de comprovar ao presenciar a guerra das vacinas desencadeada pela concorrência entre os países ricos pela sua aquisição antecipada.
O acelerado processo de apropriação do conhecimento científico se traduz no crescente patenteamento dos produtos da ciência em todos os processos utilizados para o seu desenvolvimento (sobre a apropriação intelectual da própria vida pelas empresas da chamada biologia sintética, ver Nuño de la Rosa, 2013). A evolução da legislação internacional sobre patentes, com a do mercado editorial, deu lugar a um cenário de preços exorbitantes, oligopólio empresarial e acesso sangrentamente desigual (Díaz e Arador, 2020).
Outra questão que a crise de covid acelerou tem a ver com a transformação das fontes de autoridade científica, que tradicionalmente emanou de mecanismos e instituições como a revisão por pares ou os reconhecimentos conferidos por academias científicas. Por um lado, o esvaziamento de autoridade desses mecanismos e instituições herdados está sendo produzido como resultado da tendência crescente, interna à própria ciência, de ir diretamente ao público para promover diferentes programas de pesquisa em competição para conseguir financiamento (Daston, 2021: 85). Por sua vez, a acessibilidade aos resultados da ciência, somada à crise dos mecanismos de legitimação tradicionais, ampliou as fontes consideradas legítimas ao somar novos atores geradores de opinião científica nas redes sociais.
Por outro lado, a legitimidade do conhecimento acumulado pelos mecanismos de autoridade tradicionais também é abalada pelos ataques externos do movimento anticiência, que viveu uma nova reencarnação nas teorias conspiratórias e negacionistas da pandemia. O movimento anticiência condensa a dimensão sociopolítica da ciência em agentes políticos e empresariais concretos (Bill Gates, a tecnologia 5G), quando ninguém mais parece querer denunciar publicamente os efeitos devastadores da mercantilização da ciência e a tecnologia.
Nesse cenário, a direita conseguiu impor uma narrativa, para a qual a esquerda institucional também contribuiu, em que economia e saúde se opõem como polos de uma disjuntiva onde o termo saúde se relaciona à saúde pública e as medidas de restrição social, ao passo que a economia se associa à abertura. Aqui, a ciência aparece como fonte neutra, reguladora das medidas destinadas a proteger a saúde pública, e a política como árbitro que precisa decidir entre os conselhos da ciência e as demandas da economia.
Em nossa perspectiva, é urgente uma narrativa diferente da articulação entre economia e saúde, ciência e política, que fuja do relativismo conspiratório, ao mesmo tempo em que abandone o endeusamento da ciência como fonte neutra explicativa e legitimadora de medidas de ação política. A necessidade de destacar os componentes políticos das decisões públicas em torno da saúde pública não é, portanto, apenas uma questão de transparência, mas exige uma reflexão crítica sobre a própria natureza, a ciência e seus produtos.
Por um lado, diante da crise ambiental e política da qual esta pandemia parece ser apenas um sintoma precoce, as lutas social e ambiental só podem ser concebidas como inseparáveis. Como demonstra o modo como a vulnerabilidade diferencial frente à doença está atravessada pela vulnerabilidade social em todos os seus eixos, assim como a responsabilidade ecológica do ser humano na origem e os efeitos da pandemia, a complexa natureza da pandemia revela que não existem os especialistas totais para os problemas transcientíficos e que deixar a política nas mãos de comitês de especialistas é simplesmente falacioso. Por outro lado, dado a forma como os interesses industriais afetam a empresa científica em todas as suas fases de produção e distribuição, o controle público da ciência e seus produtos se impõe como a única alternativa.
Na era pré-covid, poucos imaginavam que uma crise sanitária poderia desencadear a paralisação quase total da maquinaria produtiva do capitalismo global, sobretudo se a comparamos com praticamente a ausência de ação política que acompanhou a ameaça, amplamente documentada, das mudanças climáticas. A explicação mais óbvia deste paradoxo se refere à escala transgeracional das mudanças climáticas em contraposição à pandemia, mas a mais interessante politicamente indica que as mudanças necessárias para combater as mudanças climáticas são de uma natureza estrutural “de tal magnitude, alcance e duração que é normal que encontrem uma resistência muito poderosa e bem financiada” (Daston, 2021: 91).
E, no entanto, poderia ter acontecido e, claro, é muito plausível [para pensar] em futuros cenários pandêmicos que não tivesse sido desenvolvida, ou ao menos não neste tempo recorde, uma vacina efetiva contra o coronavírus. E mais: cabe ainda o cenário de que surjam variantes resistentes, um cenário favorecido pela ganância dos países ricos que pretendem investir as vacinas acumuladas em doses de reforço, em vez de doá-las aos países pobres (Phillips, 2021b).
A solução política para esta pandemia e as que virão não pode ser depositada em um otimismo tecnológico de curto prazo que coloque as vacinas como a panaceia exclusiva, mas requer uma reflexão radical sobre as condições de vida e a ciência que são produzidas em um mundo profundamente desigual e ecologicamente devastado.
Arrizabalaga, Jon (2021) “Cómo entendemos históricamente las epidemias”. En Del Llano, Juan e Camprubí, Lino (Eds.) ‘Sociedad entre pandemias’. Madrid: Fundação Gaspar Casal;
Barea, Jesús (2021) “Razones por las que esta pandemia nunca fue una batalla”. En Del Llano, Juan y Camprubí, Lino (Eds.), op. cit;
Caro Maldonado, Alfredo (2021) “No es ciencia todo lo que reluce. Análisis crítico del sistema tecnocientífico”, ‘Dosieres ecosociales’. Madrid: FUHEM;
Daston, Lorraine (2021) “Covid desde la epistemología histórica”. En Del Llano, Juan y Camprubí, Lino (Eds.) ‘Sociedad entre pandemias’. Madrid: Fundação Gaspar Casal;
Díaz, Jorge Luis e Arador, Álvaro (2020) “La propiedad intelectual farmacéutica y su amenaza para la salud pública”, viento sur;
Etxeberria, Ander (2021). “Covid y otras relaciones entre virus y humanos”. ‘Revista de la Sociedad de Lógica, Metodología y Filosofía de la Ciencia en España’, número especial: Corredor Lanas, Cristina y Pérez Chico, David (Eds.) “Filosofía en tiempos de pandemia”, pp. 22-29;
Helmore, Edward (2020) “Coronavirus lifestyles of the rich and famous: how the 1% are coping”. The Guardian. 13/03/2020;
Latour, Bruno (1984) “Les Microbes: guerre et paix suivi de Irréductions”, Paris: Métaillé;
(2005) Reassembling the social: an introduction to actor network-theory. Oxford New York: Oxford University Press;
Lomeña, Andrés (2020) “Somos virus y bacterias. Una entrevista con el biólogo Máximo Sandín”. Huffington Post. 07/04/2020;
Nuño de la Rosa, Laura (2021) “La construcción de la pandemia”, ‘Revista de la Sociedad de Lógica, Metodología y Filosofía de la Ciencia en España’, número especial, pp. 8-12;
(2013) “¿Puede ser la vida objeto de ingeniería?” viento sur, 131, 42-51;
Phillips, Leigh (2021a) “Agradecer al socialismo por la vacuna. Culpar al capitalismo por su distribución”, viento sur, 6/01/2021;
(2021b) “Desigualdades: ¿A quién beneficia que el virus mute? Contra el apartheid de las vacunas”. viento sur, 16/08/2021;
Richardson, Sara S. y Shattuck-Heidorn, Heaher (2020) “Introducing the GenderSci Lab COVID Project” GenderSci Blog, 24/06/2020. https://www.genderscilab.org/blog/covid-intro;
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Ciência e capitalismo em tempos de covid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU