21 Setembro 2021
Durante sua coletiva de imprensa no avião voltando de sua viagem à Eslováquia no dia 15 de setembro, o Papa Francisco disse uma frase curta que ressuscita antigas reflexões teológicas: vamos todos para o paraíso?
A reportagem é de Sixtine Chartier, publicada por La Vie, 17-09-2021. A tradução é de André Langer.
Esta é uma tradição da qual o Papa Francisco raramente se desvia: a curta frase tão enigmática quanto polêmica pronunciada em tom jocoso na coletiva de imprensa concedida no avião quando voltava de uma viagem apostólica.
Este ano, ao voltar da Eslováquia, o Papa respondeu a uma pergunta sobre as uniões civis e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Francisco diz ser favorável à união civil para casais homossexuais, mas não do casamento como sacramento. Nada de muito original até aí, pois ele já havia se manifestado anteriormente sobre o assunto.
Ao voltar às suas explicações sobre o assunto, muito claras, ele comenta: “Somos todos iguais. Há que respeitar a todos. E o Senhor é bom e salvará a todos. Não digam isso em voz alta. (Risos) O Senhor quer a salvar a todos”.
O que abre complexas reflexões teológicas sobre o assunto da salvação e os fins últimos. Afirmar que Deus “salvará a todos” é problemático, para dizer o mínimo, do ponto de vista da doutrina católica. Concretamente, isso põe em jogo a existência do inferno: se Deus salva a todos, isto é, leva todos ao paraíso, para que serve um inferno? No entanto, a Igreja Católica ainda professa sua existência.
“Esta é uma questão antiga que foi resolvida no 5º Concílio de Constantinopla no século VI”, explica o dominicano Marie Augustin Laurent-Huyghues-Beaufond. O debate gira em torno da figura de Orígenes, Padre da Igreja, cujo ensinamento foi parcialmente rejeitado por este concílio ecumênico no início da era cristã. Em particular, sua crença de que “toda a criação recuperará o esplendor perdido na queda de Adão”. Um conceito teológico que responde ao nome técnico de “apocatástase”, explica o dominicano.
Salvar a todos após a morte: qual é o problema? “Se todos nós somos salvos, independentemente do que façamos na terra, o que salvaremos da liberdade humana?, detalha o irmão Marie Augustin. Deus é tão onipotente que pode compelir o homem à salvação? Deus pode nos forçar a ser salvos contra a nossa vontade?”.
Essa seria uma “predestinação reversa” que suscita ainda outras questões, explica o dominicano: “Se todos somos destinados à salvação, de que adianta trabalhar pelo bem do próximo na terra?” Poderíamos responder dizendo que fazer o bem não requer necessariamente retribuição. No entanto, impõe-se uma questão de justiça: “Nosso Deus é um Deus de misericórdia, explica o irmão Marie Augustin. Ele, portanto, deseja a salvação de todos. Mas não há misericórdia sem justiça; isso pode ser visto em uma escala humana nos casos dos abusos sexuais. O mesmo vale para Deus, ele não pode deixar o mal ficar impune”.
Não é terrível conceber um Deus que autoriza a existência do inferno? Nesse ponto, o dominicano refere-se a um opúsculo escrito pelo teólogo Hans Urs Von Balthasar, O Inferno. Uma questão que surgiu em 1992. “Em suma, ele diz: devemos manter o inferno como uma possibilidade real, mas devemos esperar que esteja vazio”.
Também devemos lembrar que o debate sobre o inferno é, como todas as questões escatológicas (ou seja, relativas aos fins últimos), altamente especulativo. Para não se prender a debates obscuros, o irmão Marie Augustin oferece um critério simples: “O que dizemos sobre a vida do homem na vida eterna é compatível com a nossa experiência presente da vida?” Visto que a vida eterna é uma extensão da vida terrena, uma não pode contradizer de maneira radical a outra. E Deus não pode se contradizer.
Voltemos ao Papa Francisco. O episódio do avião é difícil de interpretar porque é ambíguo: sua frase curta é imediatamente corrigida pela afirmação de que Deus “quer” salvar a todos, o que anula a sua primeira assertiva e está perfeitamente alinhada com a doutrina católica.
“Este episódio faz parte de sua atitude geral, bastante aberta, desinibida, simpática, estima o irmão Marie Augustin. Ele sabe muito bem que esse assunto exige uma elaboração muito mais profunda, mas não acha ele que essas construções teológicas sutis não interessam a muita gente hoje?” Como homem da mídia, o Papa Francisco certamente não ignora essa realidade.
Quanto ao fato de que sua intervenção se enquadra na questão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, isso não é trivial. “Podemos constatar que desde o início de seu pontificado, nas questões LGBT, ele adotou uma estratégia de frases curtas, indica o dominicano. Uma forma de contornar a impossibilidade católica de fazer evoluir os textos do magistério”. Isso dá a medida das palavras do papa que se dirige ao público em geral: “Certamente a Igreja não lhe parece muito inclusiva hoje, mas você verá que, na eternidade, ela será inclusiva. A salvação é oferecida a todos sem distinção, apesar do que as aparências sugerem na vida da Igreja hoje: o acesso à salvação não se faz em função da orientação sexual”.
Como escreveu o grande místico espanhol São João da Cruz: “Na noite da nossa vida, seremos julgados pelo amor”.
Karl Rahner, por ocasião do seu 75º aniversário, concedeu uma longa entrevista para a revista America. A entrevista foi republicada neste ano e traduzida em português e pode ser lida, na íntegra, aqui.
Na entrevista, falando da sua obra teológica, o teólogo alemão, confidencia:
"Há um ou dois anos, talvez, eu realmente tinha a intenção de escrever algo sobre um possível ensino ortodoxo sobre a apocatástase (a doutrina de que todos os seres livres, no fim, compartilharão a graça da salvação). Na realidade, a teologia anterior considerou a existência da condenação eterna e do inferno como um fato já dado ou do qual se tinha a certeza absoluta de que ocorreria, no mesmo sentido que considerava como certos o paraíso e a bem-aventurança eterna.
Hoje, penso eu, não apenas eu, mas também outros teólogos, falaríamos de um modo diferente, sem querer representar um ensino herético sobre a apocatástase. Dentro do meu tempo histórico, devo lidar, de fato, de forma absoluta e incondicional, com a possibilidade de estar eternamente perdido. Mas, apesar de certos textos do Novo Testamento, eu não sei com absoluta certeza se essa perdição eterna ocorre para qualquer pessoa em particular. E posso dizer, espero, sem conseguir saber disso agora com certeza, que Deus, de fato, criou um mundo em que todas as questões realmente encontram uma solução positiva.
Então, eu realmente ainda gostaria de escrever algo sobre esse ensinamento sobre a apocatástase que fosse ortodoxo e aceitável. Mas é uma questão muito difícil. Você provavelmente teria que estudar e responder mais uma vez novas questões na história do dogma e, especialmente, também na exegese. Você também deveria considerar questões de interpretação exegética e filosófica. Para tudo isso, meu tempo e forças podem não ser suficientes. Então, eu não sei como isso vai prosseguir."
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“Vamos todos para o paraíso”: mas o que o Papa Francisco realmente quis dizer? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU