23 Agosto 2021
"Continuamos a contar-nos esses mitos, em diferentes latitudes e em distintas línguas, porque sabemos que aquela fronteira nos pertence, está dentro de cada uma de nós, que cada uma daquelas mulheres poderia ser um de nós, que cada uma daquelas crianças é um pequeno Moisés, "salvo das águas" e que para além de cada rio poderia haver a nossa mão a resgatar aquele jovem náufrago a caminho de sua terra prometida", escreve Viola Ardone, em artigo publicado por La Stampa, 21-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
As mãos são um rio e seus gestos ondas, que embalam as crianças de uma margem à outra de uma hipotética bacia hidrográfica entre salvos e submersos. Ou pelo menos é o que as mães afegãs devem ter pensado, que nestes últimos dias lotaram o aeroporto de Cabul e tentaram pelo menos que seus filhos cruzassem a fronteira rumo à liberdade.
As crianças voam sobre as cabeças cobertas por véus, carregadas por mãos primeiro familiares e depois gradualmente desconhecidas, e conquistam palmo a palmo, literalmente, uma chance de salvação. Quanto mais se afastam de quem as trouxe ao mundo, mais ganham a oportunidade de escapar da lei da violência que, como parece inevitável, está a ponto de dominar aquelas terras e seus habitantes. Eles se erguem acima da multidão, as crianças, depois desaparecem, ressurgem como se empurrados por ondas humanas, feitas de ossos, tendões e músculos, e finalmente superam a barreira do arame farpado ou do muro de proteção. Uma mão as agarra do outro lado e as ajuda a desaparecer além da cortina, longe dos olhos de quem as trouxe ao mundo. Essas mães e pais as afastam de si sem nenhuma certeza, confiando-as apenas ao destino, na esperança de que possam sobreviver e talvez ficar bem e serem felizes longe deles, viajando para uma terra estrangeira, depois de terem desaparecido de seu horizonte através aquele rio de mãos.
É uma cena de partir o coração, contam os militares britânicos que resgataram as crianças. É uma cena de filme, uma cena épica e ancestral, que tem as suas raízes nos mitos fundadores das mais antigas civilizações e que, portanto, atinge o nosso imaginário tanto no plano racional, como no plano emocional e ainda mais simbólico. E precisamente por isso nos abala profundamente, porque há tantas histórias naquela cena: está lá aquela de Moisés que num cesto de vime é confiado por sua mãe às águas do Nilo para ser salvo da fúria assassina do Faraó egípcio, depois de ordenar o massacre de todos os bebês judeus.
Foto: Reprodução de frame do YouTube.
Há Rômulo e Remo, filhos de Reia Silvia, abandonados nas margens do Tibre por ordem do cruel Amúlio. Lá está Sargão, futuro rei dos acadianos e fundador de um dos maiores impérios do mundo antigo, entregue ao rio Eufrates por sua mãe para lhe oferecer uma chance de sobrevivência. Os pequenos protagonistas de todas essas histórias estão destinados a se salvar e realizar feitos memoráveis, a fundar reinos e liderar povos, apesar da situação de fragilidade inicial. Todos esses mitos, que têm a ver com o sentido do sagrado e são comuns a várias civilizações, falam de um renascimento simbólico em uma terra não mais hostil, onde o herói finalmente poderá se afirmar, graças à escolha de uma mãe que no ato de se separar dele o confia, lhe dá confiança, o torna outro de si mesmo, enfrentando de antemão a maior prova destinada a um progenitor: a do desapego, da separação.
As antigas histórias de crianças confiadas à "providência", a uma mão amiga que cuide das suas necessidades, as acolha, tome conta delas, as alimente e ajude e tornarem-se adultas, estão unidas por alguns elementos recorrentes: uma fronteira a atravessar - geralmente um rio - uma violência da qual escapar, uma mulher perseguida por uma lei impiedosa. E continuamos a contar-nos esses mitos, em diferentes latitudes e em distintas línguas, porque sabemos que aquela fronteira nos pertence, está dentro de cada uma de nós, que cada uma daquelas mulheres poderia ser um de nós, que cada uma daquelas crianças é um pequeno Moisés, "salvo das águas" e que para além de cada rio poderia haver a nossa mão a resgatar aquele jovem náufrago a caminho de sua terra prometida.
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Aquele pequeno Moisés no arame farpado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU