Os livros mais conhecidos de René Girard, como “Violência e Sagrado” (Paz e Terra, 1990) e “Bode expiatório” (Paulus, 2004), deixam a distinta impressão de serem um projeto intelectual moldado e forjado na solidão.
A resenha é de Costica Bradatan, professor de Humanidades na Texas Tech University, nos Estados Unidos, e professor pesquisador honorário de Filosofia na Universidade de Queensland, na Austrália. O artigo foi publicado em La Croix International, 06-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma estratégia séria parece estar em ação aqui: os livros são igualmente densos e lúcidos, seus argumentos não estão apenas fortemente unidos, mas também são apresentados com elegância.
Ficamos imaginando as longas horas de trabalho árduo e solitário por trás de cada um desses títulos.
Mesmo assim, Girard (1923-2015) era uma pessoa bastante sociável e um conversador compulsivo; ele precisava estar com os outros tanto quanto precisava da sua solidão. Alguém que conhecia Girard bem observou que ele era “obstinadamente dialógico”; gostava de “trabalhar com as pessoas sobre as coisas”.
De fato, há toda uma série de livros – acima de tudo, o inovador “Coisas ocultas desde a fundação do mundo” (Paz e Terra, 2008) – nos quais ele envolveu outros estudiosos como interlocutores.
Girard estava ciente de que grande parte do que ele estava propondo era novo demais e incomum demais (e às vezes idiossincrático demais) para ficar sem contestação.
Sendo sempre o estrategista, ele frequentemente convidava as pessoas a desafiarem seus argumentos antes de publicá-los. Além da absoluta necessidade humana de estar com os outros, Girard precisava da oposição e de contra-argumentos de seus parceiros de conversa para testar suas ideias e levá-los ao seu ponto de ruptura.
E não só isso. O próprio diálogo pode ser um processo singularmente criativo: algo novo geralmente nasce na sua mente no próprio processo de você se dirigir à pessoa à sua frente.
Você não sabia que aquela coisa existia até abrir a boca. Agora que isso veio à tona, você pode ficar tão surpreso quanto o seu parceiro de diálogo. Girard, o conversador, devia saber alguma coisa sobre esse processo.
Além dos livros em que colaborou com outros, Girard deu inúmeras entrevistas a jornais, revistas e jornais nos Estados Unidos e em outros lugares.
Com ele, porém, não se tratava de vaidade; você fica sabendo muito pouco sobre Girard, a pessoa, a partir dessas entrevistas.
Em “When These Things Begin: Conversations with Michel Treguer” [Quando essas coisas começam: conversas com Michel Treguer], Girard diz a Treguer: “Não estou escondendo a minha biografia, mas não quero ser vítima do narcisismo a que todos estamos inclinados”.
Para Girard, as entrevistas serviam ao mesmo propósito de seus “livros de conversa”: desafiar e testar as suas ideias enquanto descobria coisas novas na companhia de outras pessoas.
Cynthia L. Haven, autora de uma biografia notavelmente perspicaz de Girard, “Evolution of Desire: A Life of René Girard” [Evolução do desejo: uma vida de René Girard], reuniu agora uma seleção dessas entrevistas.
Elas nos dão uma boa imagem não só da complexidade e da natureza multifacetada das ideias de Girard, mas também do processo pelo qual um jovem professor de Literatura Francesa originalmente atuando em um campo bastante restrito se tornou um pensador visionário de renome global, tão reverenciado quanto contestado.
Como Haven escreve em sua introdução, “nessas entrevistas, ao longo de anos e décadas, Girard gradualmente se torna Girard, como uma imagem que aparece lentamente no revelador de uma antiga câmara escura”.
O núcleo da coletânea de Haven lida inevitavelmente com a teoria mimética de Girard. Algumas dessas entrevistas podem servir como excelentes introduções singulares ao “sistema Girard”.
Se você não tiver tempo para ler a obra de Girard, as entrevistas com Rebecca Adams ou com Robert Pogue Harrison, apenas para dar dois exemplos, podem lhe oferecer uma ideia bastante boa do que é a teoria mimética.
Em todo o caso, você deve reunir o suficiente para decidir se ama ou odeia o pensamento de Girard – as duas respostas mais comuns ao girardismo. Pouquíssimos leitores dele são ambivalentes a seu respeito.
Os entrevistadores frequentemente pressionam Girard a explicar como a sua teoria se aplica à vida real, e ele fica feliz em obedecer.
A jornada da teoria pelo mundo é uma grande história por si só. Assim que o seu argumento alcançou uma certa “elegância”, Girard começou a perceber a sua crescente aplicabilidade: “De repente, você vê que existe uma única explicação para mil fenômenos diferentes”.
Ele formulou a sua teoria pela primeira vez em um livro de História Literária, depois passou a aplicá-la ao estudo da mitologia e da religião, depois à política e às relações internacionais, depois à sociedade e à economia, à moda e aos transtornos alimentares e afins. Basta abrir um jornal e escolher alguma coisa, qualquer coisa, aleatoriamente.
Até mesmo o mercado de ações? Especialmente o mercado de ações, Girard responderia. Essa é a “instituição mais mimética” de todas – de fato, uma ilustração clássica de como funciona a teoria mimética: “Você deseja ações não porque elas sejam objetivamente desejáveis. Você não sabe nada sobre isso, mas deseja as coisas exclusivamente porque outras pessoas as desejam. E, se outras pessoas as desejam, seu valor sobe cada vez mais”.
Dificilmente há um campo, esfera de vida ou situação em que a teoria de Girard não se aplique. Ele acha isso fascinante. Alguns de seus leitores acham que isso é bom demais para ser verdade. Outros acham isso escandaloso.
Na coletânea de Haven, a teoria mimética de Girard, com sua gama cada vez maior de aplicabilidade, emerge com força.
Ele tinha o raro dom de narrar ideias.
No entanto, há algo mais que o livro revela, o que não apenas o torna uma leitura atraente, mas também faz com que ele mereça pelo menos a mesma atenção:
- o retrato de René Girard como um grande intelectual público e um dos pensadores mais seminais do nosso tempo;
- a sua posição intransigentemente não ortodoxa e incomum na academia estadunidense;
- o fascinante caso de alguém que, por uma questão de método acadêmico e de estilo de vida pessoal, sempre parece ir contra a corrente, independentemente das consequências.
Jean-Michel Oughourlian, renomado neuropsiquiatra e psicólogo francês, é um dos interlocutores de Girard em “Coisas ocultas desde a fundação do mundo”.
A descoberta da teoria de Girard (e depois a oportunidade de trabalhar com ele) foi uma experiência que mudou a vida de Oughourlian.
Um presente que Oughourlian recebeu de Girard, lembra ele, foi a “leveza, o humor e as risadas ao abordar os problemas mais espinhosos (...) Eu nunca ri tanto quanto durante a preparação de ‘Coisas ocultas...’, nem nunca aprendi tanto”.
É precisamente isso que a coleção de Haven revela. Girard leva suas ideias totalmente a sério, mas nunca parece se levar muito a sério.
“Meu desejo principal era comprar um carro”, lembra o teórico do desejo mimético sobre os seus primeiros anos nos Estados Unidos. As suas conversas gravadas são cheias de autoironia, de autodepreciação e até de autodeboche.
Tamanha humildade, vinda de um homem tão grande, é o que torna a leitura da coletânea de Haven uma experiência intelectual profundamente revigorante.
Normalmente, Girard se esconde atrás de uma máscara professoral sóbria, e é isso que torna o seu humor tão efetivo. “Basta olhar para a academia, esse vasto rebanho de individualistas que parecem ovelhas”, exclama ele em uma das entrevistas.
Nietzsche, observa ele em outro lugar, “está tão errado que, de certa forma, ele está certo”. Ao falar de como ele chegou à teoria mimética, Girard admite, ironicamente, que “a minha teoria me pegou de surpresa (...) Na realidade, estou tão surpreso com ela quanto qualquer outra pessoa”.
Girard tinha muita fineza, e pode ser por isso que a sua ferroada era tão letal: “No fundo, Sartre era muito confortavelmente um pequeno-burguês, um amante do turismo e alguém muito equilibrado para se tornar um verdadeiro gênio”.
Há outro presente que Jean-Michel Oughourlian lembra ter recebido de Girard: “Uma irreverência absoluta em relação aos autores canônicos, ou seja, a liberdade de pensamento”.
Na academia estadunidense, Girard era um animal estranho. Mesmo quando ele conseguiu chegar ao topo do sistema (ele ocupou cargos de prestígio na Johns Hopkins e em Stanford, entre outros lugares), ele nunca se importou muito com as suas regras e convenções.
As hierarquias e as figuras sagradas do jogo acadêmico não o impressionavam. Sua posição exata no sistema nunca foi clara, o que ele deve ter achado divertido. Muitos o consideravam um estudioso de literatura.
No entanto, diz ele, “em um sentido acadêmico, a crítica literária é o ‘meu’ campo tanto quanto a antropologia, a psicologia ou os estudos religiosos”.
Ele se interessou e fez um trabalho significativo em todos esses campos, sem ter uma formação canônica em nenhum deles. A única disciplina em que ele teve essa formação foi aquela em que ele menos trabalhou.
“Se o nosso campo ‘real’ é aquele em que não somos autodidatas”, disse ele, “o meu campo ‘real’ é a história.”
Aqui, ele lecionava em uma universidade de elite enquanto elogiava as leis do autodidatismo: “Em tudo o que realmente importa para mim (...) eu sou um autodidata”.
Algo que muitos dos seus colegas acadêmicos não podiam perdoar em Girard era a sua religião. Embora ele partisse de uma posição puramente secular (“Estou enraizado na tradição vanguardista e revolucionária”), Girard adotou o cristianismo por razões filosóficas.
Sua teoria o levou a pensar que a Paixão de Cristo (conforme registrada nos Evangelhos) foi uma virada na história, porque pôs fim a uma linha ininterrupta de bodes expiatórios violentos, ao expor o mecanismo do bode expiatório pelo que ele realmente era.
Como Haven mostra em “Evolution of Desire”, a conversão de Girard foi principalmente “intelectual”. Ele precisava crer a fim de entender melhor o mundo – como ele observou, “a conversão é uma forma de inteligência”.
Mesmo assim, muitos não conseguiam compreender como um homem tão brilhante e sofisticado (e ainda por cima francês) podia ser tão medieval.
As conversões não ocorriam exatamente de maneira intelectual na academia estadunidense. Quando a “teoria”, a última importação francesa, era a verdade do Evangelho nas humanidades, Girard nunca deixou de zombar fortemente dela.
“Se um Rabelais aparecer na hora certa”, disse ele em 1993, “ele fará coisas hilárias com o nosso escolasticismo atual e, em particular, com o nosso uso da palavra ‘teoria’.”
Girard cresceu e foi educado na França, e via as coisas através disso. Nos Estados Unidos, a “teoria” era uma moda que logo morreria, como sempre ocorre:
“A próxima geração se perguntará que impulso poderia mover tantas pessoas que continuam escrevendo interminavelmente a prosa mais complicada em um vazio completo de sua própria criação, desconectadas não apenas da realidade do mundo delas, mas também dos grandes textos literários, dos quais a teoria recente tem feito um uso descaradamente parasitário.”
Por mais profético que Girard fosse em outros aspectos, ele estava completamente errado aqui. A próxima geração de estudiosos da literatura podem ter abandonado a “teoria”, mas apenas para se aventurar em novos vazios.
O que mais deprimia Girard na academia (embora fosse mais uma confirmação da sua teoria) era a combinação de ferocidade e do niilismo que ele observava entre os seus colegas.
Eles eram os representantes de um tipo muito peculiar de fanatismo: fanáticos que não acreditam em nada. Eles podiam travar a pior das guerras intelectuais, ferir e humilhar os outros, até mesmo destruir carreiras, em nome de absolutamente nada:
“Sempre que as pessoas realmente acreditam em alguma verdade maior do que o mundo acadêmico, elas não se dedicam à busca do sucesso acadêmico com tanta ferocidade quanto as pessoas que não acreditam em absolutamente nada (...) longe de tornar as pessoas mais pacatas e generosas, o niilismo atual tornou a vida acadêmica mais dura e menos compassiva do que antes.”
Isso levou Girard a uma posição cada vez mais isolada dentro da academia estadunidense. Não que ele não gostasse de estar em tal situação – no máximo, ele pode ter achado isso estimulante.
Quanto mais seus colegas o evitavam, mais ele mencionava a nudez do imperador; quanto mais profundo era o silêncio deles, mais nítida era a sua crítica.
O papel de alguém “do contra” parecia combinar bem com ele. Enquanto a maioria dos seus colegas anunciava o seu desdém pela religião, Girard elogiava as virtudes da fé verdadeira: “Se tivéssemos uma religião mais genuína, teríamos menos violência”.
Nada muito escandaloso aqui, certamente. Porém, logo em seguida, ele adicionou uma vírgula. “É nisso que a maioria das pessoas comuns ainda acredita”, disse ele, “e, como regra, quando as pessoas comuns e os intelectuais não concordam, é mais seguro seguir as pessoas comuns.”
É possível seguir em frente dizendo muitas coisas na universidade de hoje, mas não isso. O teórico do bode expiatório estava procurando problemas.
Um comentário que Haven faz de passagem no fim da sua biografia tem me assombrado.
Quando “Achever Clausewitz” de Girard – outro “livro de conversas”, com Benoît Chantre como interlocutor – foi lançado na França em 2007, ele se tornou um best-seller instantâneo. Foi muito falado e debatido apaixonadamente; até o presidente francês tinha muito a dizer sobre ele.
Girard era uma estrela em alta demanda, com jornalistas que acampavam em frente à sua casa em Paris.
Isso na França. “Enquanto isso”, comenta Haven ironicamente, “de volta aos Estados Unidos, que foi o seu lar por 60 anos, Girard caminhava pelo campus de Stanford praticamente despercebido e não reconhecido”. O contraste não podia ser mais nítido – mas ele devia preferir assim.