05 Agosto 2021
"Ontem eu me perguntava qual era o motivo de manter a palavra raça - cuja verdade histórica, se existiu, se exauriu - nos documentos da comunidade europeia, e a única resposta razoável que me dei é a introjeção, de um impulso de mercificação para preservar e criar caixas para inserir os seres vivos para que depois possam ser trocados uns com os outros, intercambiáveis, como as cédulas de dinheiro. São, aliás, nós somos, o único recurso natural ainda amplamente disponível no planeta, nossa reprodução custa algumas calorias, mas nos dá prazer. Portanto, somos exploráveis. Nós colonizadores de nós mesmos, como sempre, mas mais do que nunca. Portanto, precisamos dos rótulos, das caixas, da raça", escreve Chiara Valerio, em artigo publicado por La Repubblica, 31-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você já jogou com uma bola invisível e um árbitro que pode gritar "Fora!" à vontade?
Assim é a raça. Em uma enciclopédia chinesa que existe apenas em um conto de Borges, aparece uma classificação de animais. Que se dividem em "aqueles que pertencem ao imperador", as sereias, os leitões, os fabulosos, os treinados, outros rótulos e, por fim, "aqueles que de longe parecem moscas". Para mim, todos os seres humanos pertencem à última categoria. Aqueles que de longe parecem moscas. Por outro lado, como já lemos nos livros escolares, somos uma espécie sem raças. A raça é uma invenção cultural.
Já que, no entanto, estamos em um ponto da história humana em que a nossa natureza e a nossa cultura tendem a coincidir, é correto observar as coisas a partir daquela que é a característica específica da nossa espécie e que nos assemelha às máquinas calculadoras: a linguagem.
Na capa deste jornal ontem Maurizio Molinari escreveu sobre um e-mail recebido por todos os jornalistas da redação sobre dados sensíveis que poderiam ser objeto de atenção. Um desses dados sensíveis era 'a origem racial ou étnica'.
Embora o e-mail tenha sido um erro burocrático, o que se lia nele, e em particular "a origem racial ou étnica" é uma fórmula que está no texto do regulamento da UE 2016/679, presente no Código de Privacidade da nossa República pelo decreto 101 de 2018. Raça, observou Molinari, é uma das palavras que polui a nossa linguagem. Além disso, o artigo 3 da Constituição italiana afirma: "Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais".
Molinari propõe alterar a palavra não só dos documentos da União Europeia, mas também da Constituição.
Quando chego perto o suficiente para que os animais não pareçam mais com moscas e olho para eles pelas magníficas lentes da Constituição italiana - deformante, porque ao lê-la irradiamos democracia, projeto e igualdade - releio, de fato, que esta raça é a segunda característica que não deveria ser motivo de discriminação: a primeira é o sexo biológico - mas sabemos que o nosso ainda é um país diferente para mulheres e homens -, a segunda é a raça que, sendo inexistente, pode se tornar motivo de qualquer distinção, exclusão e abuso.
Começamos a catalogar, dando nomes às coisas, no Jardim do Éden; além da Encyclopédie des sciences, liderada por Diderot e d'Alembert, uma das grandes conquistas do Iluminismo europeu foi o colonialismo. Quem explora e quem é explorado. Categorias. Para marcar uma diferença racial - inexistente - entre ser humano e ser humano, é preciso inventá-la.
Ontem eu me perguntava, lendo o editorial, qual era o motivo de manter a palavra raça - cuja verdade histórica, se existiu, se exauriu - nos documentos da comunidade europeia, e a única resposta razoável que me dei é a introjeção, de um impulso de mercificação para preservar e criar caixas para inserir os seres vivos para que depois possam ser trocados uns com os outros, intercambiáveis, como as cédulas de dinheiro. São, aliás, nós somos, o único recurso natural ainda amplamente disponível no planeta, nossa reprodução custa algumas calorias, mas nos dá prazer. Portanto, somos exploráveis. Nós colonizadores de nós mesmos, como sempre, mas mais do que nunca. Portanto, precisamos dos rótulos, das caixas, da raça.
Fleur Jaeggy - que, aliás, está comemorando seu aniversário hoje - escreveu em La Paura del Cielo (Adelphi, 1998) "se o tempo tivesse uma forma, teria a forma de uma tampa", e como a matemática nos ensinou que os seres humanos são feitos da mesma substância que o tempo - tudo contamos e tudo medimos, somos nostálgicos, esperamos sim, mas quanto? - e não só de longe parecemos moscas, mas as nossas linguagens, que somos nós, e os nossos sistemas jurídicos e econômicos, que somos nós, tendem a ter a forma de uma tampa, isto é, esconder, ocultar, atender o não querer ver. E, em vez disso, devemos querer ver que a palavra raça, mais de oitenta anos depois das leis raciais, está presente nos nossos documentos, nas nossas políticas de privacidade e até mesmo na nossa Constituição.
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Raça. As categorias que não existem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU