05 Agosto 2021
Com 89 milhões de cabeças de gado, só a Amazônia abriga hoje 42% do rebanho brasileiro. Após décadas de avanço "predatório" da pecuária, especialistas dizem ser possível zerar desmatamento sem perdas econômicas.
A reportagem é de Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 04-08-2021.
A Amazônia está virando pasto. É o que números mostram: quase 42% do rebanho brasileiro está nos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Maranhão, que formam a chamada Amazônia Legal. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 89 milhões de cabeças de gado na região.
E o preço é pago pela floresta. Segundo um levantamento da plataforma Mapbiomas, entre 1985 e 2019 o Brasil transformou 67,8 milhões de hectares de florestas em pastagens, uma área maior que a da França, além de 8,6 milhões de outras formações naturais, como áreas alagadas e savanas.
"Ou seja, cerca de 76,4 milhões de hectares de vegetação nativa foram convertidos em pastagens no Brasil entre 1985 e 2019", comenta o pesquisador Tiago Reis, que estuda ações de combate ao desmatamento na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Considerando os dois últimos censos agropecuários, entre 2006 e 2018, a área de pasto apenas na Amazônia Legal saltou de 42,4 milhões para 50,6 milhões de hectares. É como se todos os anos 747 mil campos de futebol avançassem sobre a mata nativa — e fossem ocupados por bois.
De acordo com especialistas, isso ocorre por um motivo simples: plantar capim e encher de gado é a maneira mais simples de ocupar um território. E para entender essa questão é preciso recuar algumas décadas.
"O momento histórico em que se começa a pensar em políticas públicas para a Amazônia é exatamente o período da ditadura militar, com uma visão um tanto paranoica, o ‘integrar para não entregar', e grandes projetos de estradas, de agronegócio de ocupação econômica da Amazônia", contextualiza Marcio Isensee e Sá, diretor de conteúdo do projeto ((oeco)) e diretor do filme Sob a Pata do Boi, lançado em 2018.
Nos anos 1970, o governo federal incentivava esse avanço dos pecuaristas sobre a floresta. Anúncios com slogans "toque sua boiada para o maior pasto do mundo" eram recorrentes na mídia.
"O boi é a forma mais fácil de ocupar um território, depois que você derruba a floresta. O capim você planta muito facilmente, pode ir de avião e jogar semente, vai nascer. Colocar boi é a forma mais fácil de ocupar a região, mesmo que não seja necessariamente para a produtividade", pontua Sá.
Recém-lançado pelo projeto ((o))eco, em parceria com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o livro Sob A Pata do Boi - Como a Amazônia Vira Pasto traz histórias e números que fundamentam esse cenário.
O estado do Pará ilustra bem a questão. De acordo com informações compiladas pelo livro, em 1970, havia ali pouco mais de 2 milhões de habitantes. E eram menos de 2 milhões de cabeças de gado. Trinta anos mais tarde, o estado já contava com 6 milhões de habitantes e mais de 10 milhões de bois nas pastagens. Em 2010, o número de habitantes havia saltado para quase 8 milhões — já o de gado, estava em 18 milhões.
"A Amazônia vira pasto porque existem pessoas que não sabem extrair valor da floresta, só sabem extrair valor da floresta convertida em pasto, da pecuária extensiva e ineficiente", critica Reis. "O boi tem alta liquidez e é uma forma de o sujeito guardar sua reserva de valor. É um ativo que sempre valoriza."
Ele aponta que tais pecuaristas atuam "de forma predatória". "Ele não recupera o solo, não preserva pastagem. Desmata, queima, usa a pastagem até o solo esgotar, então vai para outra área, abre outra área", explica.
Há muitas situações também em que a pastagem é apenas um veículo para a grilagem. Nesse sentido, ela é feita em uma área pública invadida, para que o grileiro "afirme a posse".
"Isso é característico de regiões de fronteira agrícola, áreas que estão sendo abertas para a ocupação humana. A pecuária sempre ocupou muito esses espaços por ser uma atividade mais barata, que exige menos tecnologia e menos capital inicial do que a produção de soja, por exemplo", avalia a jornalista Fernanda Wenzel, especializada em Amazônia e uma das autoras do livro Sob a Pata do Boi.
Especializado em meio ambiente e outro dos autores do livro, o jornalista Aldem Bourscheit atenta para o fato de que nas últimas duas décadas o rebanho brasileiro tem se deslocado das regiões Sul e Sudeste para o Centro-oeste e Norte.
"Isso não é apenas por uma questão de mercado", avalia. "Está associado, sem dúvida, ao domínio do território por uma lógica econômica. O gado é usado no Brasil como instrumento de ocupação."
Soluções para a questão são complexas. Instituído em 2010, o Termo de Ajustamento de Conduta conhecido como "TAC da carne" obriga os frigoríficos a comprarem bois apenas de terras comprovadamente não desmatadas.
O problema, contudo, é que durante a vida do boi, na lógica de produção extensiva, ele passa por diversas pastagens, diversos proprietários. Na prática, como explicam os especialistas, é relativamente fácil driblar o TAC, garantindo que a última pastagem do boi antes do abate seja uma terra sem ficha suja.
Pesquisador no think tank sueco Instituto Ambiental de Estocolmo, o biólogo Mairon Bastos Lima cobra uma melhoria na fiscalização.
"O Brasil tem excelente capacidade de monitoramento e expertise no combate ao desmatamento e foi a partir disso que se conseguiu reduzir em até 80% o desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012. Mas essa efetividade depende de um Ibama fortalecido, de um ICMBio ativo, com recursos", cobra.
"Não há mistério: é uma questão de restaurar o que foi sucateado nos últimos anos. O Brasil soube fazer antes e pode fazer de novo o combate efetivo ao desmatamento. Em grande medida é questão de vontade política e pressão da sociedade para que as coisas aconteçam."
"Pessoas têm de ser sensibilizadas. Pesquisas demostram que não é só saber das consequências, mas também se importar com a situação, entender aquilo como o problema", comenta ele. "As pessoas ficarão mais sensibilizadas sobre o desmatamento da Amazônia se entenderem que se trata também de um esquema criminoso, de uma forma de corrupção que tem impactos já no presente e que custa o futuro do país."
Lima também cobra um trabalho de conscientização sobre os efeitos que o desmatamento traz para o dia a dia. A escassez de chuvas e o aumento da conta de luz, por exemplo.
Os especialistas também acreditam que se as áreas já desmatadas fossem recuperadas — e não simplesmente deixadas para trás depois do esgotamento do solo — e reutilizadas para a própria pecuária, não seria necessário desflorestar mais para aumentar a produção de carne.
"Podemos zerar o desmatamento sem perdas econômicas, pois a produtividade das pastagens no Brasil é muito baixa. É possível produzir nas áreas já desmatadas e ainda sobrariam áreas para a restauração florestal. A restauração, por regeneração natural ou reflorestamento, é importante para proteger áreas sensíveis e para absorver carbono da atmosfera e, assim, reduzir o risco climático", pontua o engenheiro florestal Paulo Barreto, pesquisador do Imazon e também um dos autores do livro Sob a Pata do Boi.
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Brasil perdeu uma França de florestas para pastos desde 1985 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU